Lenine. Mito e realidade

por RTP
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Há precisamente 150 anos, em 22 de abril de 1870, nasceu Vladimir Ilitch Ulianov, o revolucionário que enganou a polícia com 148 pseudónimos e ficou conhecido para a posteridade com um só. A distância no tempo não aplacou as acaloradas controvérsias que rodeiam a sua personalidade incontornável.

Na Praça Vermelha de Moscovo, conserva-se a múmia do dirigente soviético como atração turística para uns e como objecto de culto para outros. Na sociedade russa, Putin retraiu-se durante vários anos de abrir fogo contra a figura de Lenine, por recear que a popularidade do fundador da URSS ainda viesse a causar-lhe dissabores. Mas, em janeiro de 2016, o presidente russo saiu do seu recato e abalançou-se a uma diatribe antileninista.

Falando a jovens adeptos da sua política, Putin afirmou que o revolucionário bolchevique traíra o país a favor da Alemanha, que mandara executar a família real e que plantara uma bomba relógio na Constituição da URSS, ao permitir que as nações não-russas pudessem tornar-se independentes quando entendessem. Sobre esta última acusação, em especial, Putin defendeu a política de Estaline, contrária ao direito de separação das outras nações soviéticas.

A isto, logo replicou a Rádio Europa Livre, velha relíquia da Guerra Fria, dizendo que Putin se enganava porque Estaline sempre manteve na Constituição odireito das nações soviéticas a separarem-se da URSS. Estaline, acrescentava a Rádio Europa Livre, estendeu mesmo esse direito das quatro nações originárias a um total de onze e, mais tarde, de quinze.

Entretanto, por ocasião do centenário da revolução de 1917, uma série da televisão oficial russa Pervy Canal relatou ao público uma insurreição de Outubro em que Trotsky, um “judeu sanguinário”, era o verdadeiro dirigente e Lenine, homem de palha, apenas lhe servia de camuflagem para iludir as milenárias aversões antisemitas do bom povo russo.

O poder putinista contradiz-se portanto e dispara em todas as direcções, mas sempre tomando Lenine como alvo: por um lado, atribui-lhe um poder descomunal, ao ponto de conseguir arquitectar com quase 70 anos de antecedência a implosão da URSS que ele próprio fundara; por outro, apresenta-o como figurão decorativo para permitir o trabalho deletério de Trotsky.

Um século e meio após o nascimento de Vladimir Ilitch Ulianov, convém destrinçar onde está o mito e o que foi a realidade.
Um populismo embrulhado em linguagem marxista?

Quando Vladimir Ilitch iniciou a sua actividade política, Friedrich Engels vivia ainda e mantinha uma intensa correspondência com os dirigentes do SPD, partido alemão em que o marxismo se ia impondo com passos seguros face à inspiração lassaliana também presente na origem.

Na Rússia, a tradição populista também perdia terreno face ao marxismo, desde logo com a metamorfose ideológica do proeminente intelectual populista Georgi Plekhanov, tornado um dos fundadores e chefes de fila da social-democracia russa. Mas o populismo ia permanecer uma força na sociedade russa, porque correspondia a uma realidade material diferente da europeia ocidental: um campesinato largamente maioritário e uma industrialização concentrada apenas em algumas grandes cidades.

Daí resultavam duas atitudes diferentes: os populistas consideravam viável um socialismo russo protagonizado pelos camponeses; e os marxistas russos, fiéis à convicção de um indispensável protagonismo proletário, consideravam que a Rússia tinha de fazer primeiro a sua revolução burguesa. O próprio Lenine começou por subscrever este clássico esquema marxista, que exigia o amadurecimento de um antagonismo entre a burguesia e o proletariado, como pré-condição para se poder lutar pelo socialismo.

Mas a revolução falhada de 1905 pôs a nu a incapacidade da débil burguesia russa para ousar algo semelhante à revolução francesa de 1789-1794. Nesse momento, tornava-se obviamente irrealista insistir numa aliança entre o proletariado e a burguesia para fazer uma revolução que esta não queria de modo algum. Quem quisesse a revolução, mesmo a revolução burguesa, devia encontrar para ela algum outro sujeito, alguma outra força motora.

Lenine lançou então a ideia de uma aliança operário-camponesa. Para Plekhanov, tratava-se de uma recaída na ilusão pré-marxista segundo a qual os camponeses poderiam substituir os operários na luta pelo socialismo. Os social-democratas alemães, com August Bebel à cabeça e com Karl Kautsky a pontificar em matérias teóricas, começaram por se manter prudentemente afastados da discussão “russa”.

Anos mais tarde, com a instauração do poder soviético, Lenine adoptou o programa agrário dos socialistas revolucionários (o partido descendente do populismo) e decretou a entrega da terra aos camponeses. E nessa altura os social-democratas alemães, já francamente hostis à revolução russa, atacaram a política leninista, pela voz de Kautsky, como uma caricatura populista do marxismo.

Para Kautsky, a distribuição da terra era uma prova de como a revolução russa se encontrava longe do programa socialista para o campo, necessariamente colectivizador e só aplicável numa fase mais avançada. Não deixaria de ser curioso confrontar a acesa polémica entre Lenine e o "renegado Kautsky" com a brutal política agrária aplicada por Estaline a partir de 1928: essa política estalinista anulava a prudência de Lenine e resgatava afinal a receita colectivizadora de Kautsky.

Nos dias imediatamente sucessivos à revolução de Outubro, todos ignoravam – Lenine também – o conjunto da correspondência que nos seus últimos anos Marx trocara com populistas russos, como a lendária Vera Zassulich, e a reflexão que iniciara sobre a comuna rural russa como potencial ponto de apoio para um processo de construção socialista. Foi no âmbito dessa reflexão, e com os olhos postos em discípulos seus demasiado fervorosos e esquemáticos, que Marx teve o conhecido desabafo: se aquilo é que era ser marxista, ele próprio não era marxista.

Olhando globalmente o historial da questão agrária na teoria marxista, dificilmente se pode evitar a constatação paradoxal de que Lenine, tendo em conta a realidade russa, e sujeitando-se às recriminações de Kautsky contra a sua alegada heresia, estava afinal relativamente próximo das reflexões do Marx maduro - um caso, portanto, de ortodoxia marxista inconsciente.
Uma cultura asiática?

Pragmaticamente, os social-democratas alemães tinham começado por aplaudir o programa bolchevique de autodeterminação para as pequenas nações do império russo: tinham aderido à causa do Reich alemão durante a Primeira Guerra Mundial, queriam contribuir para a vitória alemã e viam com bons olhos a desagregação do império inimigo. Inicialmente, aplaudiram as facilidades concedidas ao chamado "vagão blindado", para os revolucionários voltarem à Rússia em Março de 1917, e aplaudiram mesmo a tomada do poder pelos sovietes em Outubro.

Mas em breve os dois partidos social-democratas da Alemanha (maioritários e independentes) perceberam que o objectivo bolchevique não era apenas derrotar o império russo, mas também derrotar o império alemão e estender a revolução aos principais países europeus. Nessa altura viraram radicalmente de bordo e passaram a hostilizar o regime soviético.

Kautsky foi mais uma vez o teórico desta hostilização, argumentando que o capitalismo destrói as pequenas nações, concentra o poder nas grandes, ou num grande "superimperialismo", e que, nesse processo de concentração, cria as condições para a passagem ao socialismo. Querer devolver às pequenas nações, ou a populações tribais do mundo colonial, um direito de autodeterminação retrógrado e obsoleto equivale a fazer andar para trás a roda da História.

Nesta discussão, mais uma vez se invocava um certa visão do marxismo, extrapolando o mandamento de "classe contra classe" ou o slogan de que "os proletários não têm pátria". E mais uma vez se ignorava a reflexão do Marx maduro, que desautorizara a ideia marxista vulgar segundo a qual seria preciso o capitalismo arrasar todas as culturas indígenas para se desenvolverem, nessa terra queimada, as condições de uma nova civilização, ela sim, socialista. Mais uma vez um marxismo ocidental contrapunha a sua suposta sofisticação dialéctica a um suposto populismo eslavo ou a um suposto antiimperialismo "asiático", ambos limitados pela geografia e pelos horizontes estreitos do empirismo.

Vivia-se as duas primeiras décadas de um século, "curto" como veio a chamar-lhe Hobsbawm, mas recheado de lutas de libertação nacional - primeiro, sob a bandeira de grandes direcções burguesas (Sun Yatsen, Mustapha Kemal Atatürk); depois, sob a bandeira do socialismo (Mao Tsetung, Fidel Castro, HoChimin); e finalmente sob uma bandeira declaradamente antisocialista, que conduziu à desagregação da URSS e do bloco de Leste.

A luta pela autodeterminação nacional demonstrou durante o século XX a sua universalidade e a sua omnipresença, nas mais diversas constelações políticas: não era um fenómeno "asiático".
O embrião do estalinismo?

Curiosamente, o marxismo ocidental, kautskiano, que censurou Lenine por entregar a terra aos camponeses e por reconhecer a independência das pequenas nações, censurou-o também por ter dado origem ao estalinismo que fez precisamente o contrário: retirou aos camponeses a terra que lhes fora distribuída e retirou às pequenas nações qualquer veleidade de exercerem a sua autodeterminação.

A arqueologia do totalitarismo estalinista com frequência o faz remontar à obra de Lenine intitulada "Que fazer?" (como a novela do escritor populista Tchernichevsky). Aí se fala da necessidade de um partido centralizado, com um jornal que lhe sirva de organizador colectivo e com uma estrutura de revolucionários profissionais.

Depois, a mesma arqueologia enumera todas as discussões em congressos partidários, em que Lenine tratou de impor esse modelo de partido e cita contra ele os social-democratas da tendência menchevique e também outros revolucionários, como Trotsky ou Rosa Luxemburgo, críticos do chamado "centralismo democrático".

Mesmo na ala esquerda da Segunda Internacional, censurava-se a Lenine uma concepção em que os militantes deviam substituir a classe operária, o comité central devia decidir pelos militantes e, finalmente, um secretário-geral decidiria pelo comité central. Uma vez no poder, o partido replicaria no funcionamento do Estado os vícios que trazia do seu próprio funcionamento clandestino.

A realidade do partido construído por Lenine foi muito diferente deste cenário. Apesar de ser amplamente reconhecido como o principal dirigente, Lenine muitas vezes ficou em minoria. Com frequência teve de bater-se tenazmente para inverter uma situação inicialmente desfavorável, e algumas vezes não conseguiu obter esse resultado por muito que se esforçasse.

Assim, como relata o seu biógrafo Jean-Jacques Marie, ao regressar do exílio suíço em 1917, Lenine propôs as "Teses de Abril" ao comité central, ao comité de Petrogrado e à conferência do partido - em todo o lado as viu rejeitadas. Viu também rejeitada a sua proposta de trabalhar para a criação de uma nova Internacional, que substituísse a Segunda Internacional manchada pela capitulação perante a guerra. Não conseguiu fazer eleger duas mulheres para o comité central - Krupskaia e Stasova. E votou sozinho a sua própria proposta de mudar o nome do partido de "social-democrata" para "comunista".

Com o tempo, alguns dos pontos de vista de Lenine, tão radicalmente minoritários dentro da sua própria corrente, foram ganhando terreno e acabaram por ser aprovados. Mas no decurso do processo entre Fevereiro e Outubro, ele voltará a encontrar-se em minoria e por vezes em questões importantes.

E mesmo depois da tomada do poder a história regista uma outra discussão, sobre a paz de Brest-Litovsk, em que Lenine sofre derrotas estrondosas: numa reunião dos comunistas do soviete de Moscovo, Lenine defende a aceitação de condições leoninas impostas pela Alemanha, porque a revolução não tem capacidade militar para fazer uma "guerra revolucionária"; mas a maioria acha que sim, e aprova a estratégia da "guerra revolucionária" com 387 votos a favor, face a apenas 13 para a proposta de Lenine. Também no comité central, a relação de forças lhe é, nesse momento, desfavorável e perde idêntica votação por nove votos contra cinco. Posteriormente, a realidade impõe-se e o partido acaba por reconhecer a necessidade de assinar um acordo ainda pior.

Pelo menos metade do tempo que Lenine viveu depois da revolução de Outubro foi preenchida pela guerra civil. As medidas draconianas que o bolchevismo tomou para ganhar a guerra eram, em muitos aspectos, a antítese do que estava projectado no famoso livro de Lenine, nunca completado, com o título "O Estado e a revolução". Houve quem o classificasse como um livro semi-anarquista, porque nele apontava Lenine para que um dia se acabasse com o poder do Estado e que as relações sociais se tornassem tão transparentes e tão fáceis de gerir que uma simples cozinheira pudesse fazê-lo.

Uma outra biógrafa de Lenine, a conservadora Hélène Carrère d'Encausse, viu no contraste entre o livro "semi-anarquista" e a realidade do Estado soviético uma prova do cinismo de Lenine. Mas o eminente sovietólogo Mosche Lewin viu algo mais: o facto de o dirigente revolucionário ter permanecido fiel à visão traçada em "O Estado e a revolução" comprova-se na luta tenaz que travou, no seu leito de morte, durante o último ano de vida consciente, contra o esmagamento das pequenas nações soviéticas e contra a opressão de toda a sociedade pela ascendente casta burocrática, com os seus privilégios e a sua prepotência.

No confinamento desse último ano, sempre por motivos alegadamente clínicos, Lenine era já, como uma vez ironizou, um prisioneiro. Se o estalinismo era filho do leninismo, era-o, segundo a expressão de Victor Serge, como um parricida continua a ser filho do seu pai biológico.


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