Uma dessas violações aconteceu a noite passada, em Williamsburg, Brooklyn.
Uma enorme multidão de judeus ultra-ortodoxos hassídicos acorreu ao funeral de um dos seus rabis, à revelia das ordens de confinamento e surpreendendo a comunidade do falecido e a polícia, que tinham colaborado para fechar ruas e garantir o distanciamento dos presumíveis poucos participantes.
A polícia foi obrigada a intervir para dispersar os enlutados, calculados em "milhares de pessoas, apinhadas num único bairro" nas palavras do comissário Dermot Shea.
O próprio Bill de Blasio foi verificar
in loco o que se passava e apoiou sem reservas a operação policial. Mais tarde,
o mayor deu largas à sua frustração e revolta, na rede Twitter.
"Algo absolutamente inaceitável sucedeu em Williamsburg esta noite: um enorme funeral no meio desta pandemia. Quando soube, fui lá eu mesmo para garantir que a multidão era dispersa. E
o que eu vi NÃO SERÁ tolerado enquanto estivermos a lutar contra o Coronavírus", escreveu Blasio.
Isolado, este tweet iria provavelmente causar compaixão e apoio ao mayor. Um segundo causou perplexidade e indignação, pelo teor violento da ameaça dirigida especialmente à comunidade judaica como um todo, abrindo mesmo caminho à detenção sumária.
"A minha mensagem à comunidade judaica, e todas as comunidades, é tão simples como isto: o tempo dos avisos já lá vai. Dei ordens à NYPD [a polícia de Nova Iorque] de proceder de imediato a intimações ou até detenções daqueles que se juntarem em grandes grupos. Isto é para deter esta doença e salvar vidas. Ponto final" anunciou o mayor.
A cidade conta com 23.000 mortos devido à Covid-19.
Para aumentar a controvérsia, horas antes do incidente em Williamsburg, milhares de pessoas congregaram-se nos parques e jardins da cidade, para ver a homenagem dos esquadrões aéreos de Thunderbirds, da Força Aérea dos EUA, e de Blue Angels, da Marinha dos EUA, ao pessoal médico de Nova Iorque.
Estes ajuntamentos não foram criticados pelo mayor. Bill de Blasio recusou mesmo ver neles alguma semelhança com o ajuntamento de 2.500 pessoas no funeral do rabi, e alegou que nos parques as pessoas respeitaram o distanciamento.
Críticas e desculpas
Nova Iorque acolhe a maior comunidade judaica fora de Israel, cerca de um milhão de pessoas, tradicionalmente apoiante do Partido Democrata e do democrata Bill de Blasio.
A maioria tem cumprido o confinamento e as ameaças não caíram bem, até num contexto de ataques contra a comunidade judaica há alguns meses.
"Os poucos que não cumprem o distanciamento social deveriam ser intimados mas
generalizar contra toda a população é ultrajante especialmente quando tantos estão a apontar o dedo aos judeus", reagiu, também no Twitter, Jonathan Greenblatt, presidente executivo da Liga Anti-Difamatória.
O perigo do anti-semitismo foi também invocado pelo rabi Mark Dratch, vice-presidente do Conselho Rabínico da America, em representação dos rabis ortodoxos.
"Ficamos muito preocupados com o comentário do mayor, que estigmatiza toda uma comunidade pelo comportamento irresponsável de um pequeno grupo", afirmou Dratch num e-mail enviado à Agência Reuters.
Blasio já pediu desculpa. Numa conferência de imprensa ao lado do comissário Shea, o mayor
lamentou a forma como se expressou sobre o funeral e evocou a sua "paixão" pela segurança dos cidadãos.
"Esta é uma comunidade que eu amo, esta é uma comunidade com quem trabalhei muitas vezes", explicou, referindo-se à comunidade judaica.
"E se viram fúria e frustração, têm razão. Falei devido a verdadeira aflição e estava a ver em perigo diante de mim as vidas das pessoas e eu não ia tolerar isso", acrescentou Blasio.
Pedido de demissão
A desculpa poderá não ser suficiente. Há quem peça a demissão do mayor.
David Marcus, um articulista do jornal Federalista, chamou-lhe "rei Herodes", e denunciou a ameaça de prisão de judeus por desobediência.
"Foi um ato de anti-semitismo suficientemente vil para dever levar o mayor a demitir-se", argumentou, acusando depois Blasio de nada fazer para proteger os judeus de Nova Iorque.
"Temos de ser absolutamente claros quando analisamos a natureza deste
tweet.
Não há qualquer hipótese, zero, nenhuma, de que Hizzoner tivesse mencionado qualquer outro grupo minoritário de tal forma. De Blasio nunca lançaria tais ameaças diretas às comunidades negra, latina ou asiática. Mais grave, o
mayor sabe disto e no entanto apontou mesmo assim a sua raiva aos judeus", escreveu Marcus num artigo de opinião.
O articulista acusou ainda De Blasio de estigmatizar os judeus como perigosos e doentes e referiu que este não foi um incidente isolado e por isso desculpável.
"De Blasio tem governado a cidade de Nova Iorque num período em que ataques brutais contra as comunidades ultra ortodoxas subiram em flecha com pouca ou nenhuma ação do gabinete do mayor. Isto dura há anos e agora tem consequências terríveis", acrescentou.
Esta não foi a primeira vez que De Blasio se dirigiu de forma pouco
respeitosa às comunidades religiosas. Em finais de março, antes das
férias de Páscoa e da Passagem, o mayor ameaçou encerrar sinagogas e igrejas de Nova Iorque se
nelas se celebrassem cerimónias em desrespeito pelo distanciamento social.
Num
outro sintoma de tiques totalitários, De Blasio apelou ainda os
nova-iorquinos a tornarem-se denunciantes, desafiando quem testemunhasse
grandes ajuntamentos a tirar fotografias e a envia-las para uma linha
especifica.
Além de muitas críticas por estar a tentar virar os cidadãos
uns contra os outros, a sugestão obrigou ao encerramento da linha pouco
tempo depois, após esta ter sido inundada por brincadeiras, incluindo
imagens de genitais masculinos.
Uma "praga bíblica"
A comunidade judaica hassídica é especialmente fechada e os seus hábitos de vida comunitária tornam muito difícil a obediência às ordens de distanciamento social, em casas que albergam famílias inteiras, com dezenas de membros de todas as idades, e onde não existem televisões nem telemóveis pessoais.
Os homens hassídicos são educados a orar três vezes ao dia, em grupos de 10, se possível no templo mais próximo.
A comunidade tem sido por isso uma das mais atingidas pela Covid-19 em todos os Estados Unidos.
O caso mais grave é Borough Park, em Brooklyn, onde mais de 6.000 pessoas testaram positivo para o SARS-CoV-2. Mais de 700 membros da comunidade foram já vitimados pelo coronavírus.
"
Não há uma única família hassídica deixada intocada" afirmava a 21 de abril Shulim Leifer, de 34 anos, que perdeu uma avó, um tio-avô, primos e vários vizinhos. "
É uma praga de proporções bíblicas", disse ao
New York Times.
O rabi que motivou o polémico funeral desta terça-feira, Chaim Mertz, morreu ele mesmo de Covid-19. Está longe de ser o único, numa longa lista liderada pelo Rabi Yaakov Perlow, lider da dinastia Hasidi Novominsker, e da organização para os ultra-ortodoxos Agudath Israel da America, talvez a personalidade judaica de maior prestígio a ser vitimada pelo novo coronavírus.
A pandemia está a dizimar os mais velhos e os rabis, pilares tradicionais e venerados pelos mais novos e, muitos deles, ao contrário de Perlow, vozes céticas quanto à gravidade da pandemia.
A ordem de encerramento das sinagogas ecoou ainda tempos de perseguição e levou também atitudes de desafio, especialmente em funerais e nas celebrações da Páscoa.
A teimosia e resistência das comunidades judaicas ultra-ortodoxas não tem desesperado só De Blasio. Em Israel, o Governo teve de usar um tom extremamente firme para obrigar os líderes destas a acatar as ordens de confinamento e de distância social.