Mediterrâneo Oriental. Gás sob pressão a leste da Europa

por Graça Andrade Ramos - RTP
Um caça francês Rafale a bordo do porta-aviões Charles de Gaulle durante manobras no Mar Mediterrâneo em março de 2019. Reuters

De aspirante a membro da União Europeia, a Turquia passou, numa breve década, a falar de igual para igual com Bruxelas e a procurar sucessivas ocasiões de confronto. Desde o alegado golpe de Estado falhado de 2016, o Presidente Tayyip Erdogan assumiu abertamente as suas intenções expansionistas, de recriar o Império Otomano, ou de, pelo menos, adicionar à sua área de influência antigos territórios.

É neste quadro que se compreende muita da política externa turca recente, sobretudo pelo domínio do Mediterrâneo Oriental e das suas riquezas naturais energéticas recém-descobertas, apoiada no estreitar de interesses com Moscovo e Teerão.

Desde 2009 que a soberania sobre esta região tem vindo a assumir importância crescente. Nesse ano, Israel iniciou ali a exploração e descoberta dos recursos de petróleo e de gás natural. Nos últimos 10 anos, foram encontradas cerca de 4.47 mil milhões de toneladas destes recursos, exploráveis em 19 bacias, e calcula-se que haja mais 12.28 mil milhões de toneladas por identificar.

A confirmarem-se as expetativas, a área poderá tornar-se uma das mais importantes zonas de produção de petróleo e de gás natural do mundo, a par do Golfo Pérsico e o Golfo do México.

Os países regionais têm estado a unir-se de acordo com os seus interesses e, em 2019, as movimentações diplomáticas alinharam-se em dois blocos, com cada um a procurar garantir o máximo de controlo sobre os recursos.
Xadrez regional
De um lado, a Turquia aliou-se ao Governo de Acordo Nacional da Líbia, ao Qatar e ao 'Norte de Chipre' - reconhecido apenas por Ancara - para garantir os seus interesses geopolíticos não só no Mediterrâneo Oriental como no Norte de África.

Sob esse acordo, expandiu alegadamente a sua ZEE (Zona Económica Exclusiva), de forma a englobar grandes ilhas gregas, como Creta e Rodes. Será esse o pano de fundo para o apoio militar ao GAN, que tem permitido a este fazer face à ofensiva do general Khalifa Aftar, que procura conquistar Tripoli e dominar todo o país.

O conflito na Líbia foi de resto objeto, no passado dia 14 de junho, de uma reunião de alto nível entre os ministros do Exterior e da Defesa da Rússia e da Turquia, em Istambul, decidida algum tempo antes num telefonema entre os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.

No mesmo dia, o ministro do Exterior do Irão também esteve na capital turca para discutir "questões regionais", conforme descreveu o Ministério turco dos Negócios Estrangeiros.

O interesse russo e iraniano no destino da Líbia explica-se com o apoio à estratégia turca para controlar os recursos energéticos do Mediterrâneo Oriental, retirando na medida do possível à Europa qualquer possibilidade de se tornar autónoma em gás natural e petróleo.

Contra a hegemonia turca, Chipre, Grécia, Israel, Itália, Jordânia, Egipto e a Autoridade Palestiniana, acordaram entre si a formação do Fórum de Gás do Mediterrâneo Oriental, dedicado à exploração conjunta dos recursos através da combinação das suas ZEE, e à construção de um gasoduto para levar o gás natural até à Europa, diminuindo a dependência desta dos fornecedores Rússia e Síria.

Grécia e Egipto assinaram há dias o seu próprio acordo marítimo, que a Turquia declarou "nulo e vazio".
Alta tensão no Mediterrâneo Oriental
A Turquia detém uma espada pendente sobre a Bruxelas, devido à pressão migrante oriunda de países como o Afeganistão, o Iraque e a Síria, sobre a Europa. Ancara é o garante, a troco de apoios financeiros avultados, de que os candidatos a refugiados na União Europeia não atravessem o Mediterrâneo.

Nos meses mais recentes, com a pressão migrante ligeiramente reduzida devido à pacificação do conflito naqueles países, a necessidade de se afirmar dona da área levou Ancara a agudizar o velho conflito com Atenas e, por extensão, com a União Europeia, sobre os limites das respetivas Zonas Económicas Exclusivas e seus recursos.

Em junho, enviou uma frota militar para a zona.

Em agosto, foi a vez de um navio de prospeção, o Oruc Reis, sob escolta naval, se deslocar até ao largo de Creta e de Chipre, onde Ancara alega ter direitos de exploração ao abrigo do acordo com o GAN, apesar de a zona se encontrar na placa continental grega.

Atenas reagiu com o envio da sua própria força naval para a área. Dois vasos de guerra colidiram numa medição de forças, houve troca dura de ameaças de parte a parte, a França foi em socorro da Grécia, reforçando a força naval europeia na zona, ao lado do Chipre e de Itália.

A 25 de agosto, o Presidente turco, Tayyip Erdogan, reagiu à intervenção militar franco-italiana, dizendo que a Turquia "não irá recuar" na defesa dos seus direitos e interesses sobre os recursos de gás natural no Mediterrâneo Oriental.

Bruxelas, que a crise financeira provocada pela pandemia de Covid-19 forçou a desviar fundos destinados às forças armadas europeias e de vigilância do Mediterrâneo, tem-se contentado em deixar agir duas das suas principais potências na defesa dos interesses gregos e cipriotas.

Mas, a 28 de agosto, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE acordaram na imposição de sanções à Turquia, se esta não recuasse na escalada das suas operações no Mediterrâneo Oriental.

Em resposta, na segunda-feira, dia 31, Ancara anunciou que o Oruc iria permanecer na área até 12 de setembro a realizar análises sísmicas para detetar a presença de hidrocarbonetos.
Os EUA avisam
Esta quarta-feira, os Estados Unidos resolveram intervir, deixando avisos sobretudo à Turquia.

Mike Pompeo, secretário de Estado de Donald Trump, revelou que o Presidente norte-americano falou ao telefone com Tayyip Erdogan e com o primeiro ministro-grego, Kyriákos Mitsotákis.

"Estamos a apelar a todos os envolvidos para se acalmarem, para reduzir tensões e iniciar conversações diplomáticas", disse Pompeo. "Não há qualquer utilidade em agravar as tensões militares na região. Daí só podem advir coisas negativas", frisou.

Seria pouco credível que Ancara amansasse perante esta simples pressão norte-americana. Por isso, as palavras de aviso de Pompeo foram antecipadas, terça-feira, por um anúncio mais subtil, o de que os Estados Unidos iriam levantar parcialmente o embargo de armas imposto há 33 anos a Chipre, autorizando a entrada no país de equipamento não letal.

O secretário de Estado dos EUA afirmou que a decisão já estava tomada há muito, sem qualquer relação com o agravamento recente da tensão militar na região. "Pensámos ser a coisa certa a fazer", afirmou Pompeo.

Ancara reagiu em fúria. A decisão norte-americana, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco, "envenena o ambiente de paz e estabilidade da região", entre as áreas grega e turca, e "não está de acordo com o espírito de aliança" entre os Estados Unidos e a Turquia.A Turquia invadiu em 1974 o norte da ilha, depois de um golpe por apoiantes da união com a área grega do sul, e tem ali colocadas 35 mil tropas, de forma a manter o que designa como Chipre turco. O embargo de armas a Nicosia, sede do único Governo cipriota reconhecido internacionalmente, foi imposto para não dinamitar os esforços de paz conduzidos pela ONU.

Os acontecimentos deste verão são contudo os mais recentes de uma longa história de confronto da Turquia, com os aliados da NATO e da União Europeia e até com os EUA, apesar da "aliança" referida.

Em 2019, Washington e Ancara desentenderam-se de forma séria, depois de esta ter adquirido sistemas de defesa aérea S-400 russos. E, tanto na Síria como na Líbia, os interesses turcos têm-se oposto aos europeus e aos americanos.

Numa provocação ainda mais recente, Erdogan converteu em mesquita a catedral Hagia Sophia, símbolo da cristandade a Oriente e entretanto transformada em Museu.

Para complicar a situação, surgiram rumores de que Erdogan terá ordenado alegados ataques militares a alvos gregos.

O jornal alemão Die Welt, citou, esta quarta-feira, fontes militares turcas, segundo as quais o Presidente terá dado ordens recentemente aos seus generais para afundarem um navio de guerra grego, sem causar vítimas. Estes recusaram. As mesmas fontes referem que Erdogan sugeriu então que, em vez de um navio, fosse um avião caça. Nova recusa.
A Líbia ou mais um pretexto
Sinais alarmantes, sobretudo quando navios de guerra turcos impediram em março uma fragata francesa de intercetar um cargueiro que estaria a transportar armas turcas para a costa líbia e para o seu Governo de Acordo Nacional, GAN. Seguiu-se um impasse.

Nos últimos meses, o Presidente Emmanuel Macron não tem poupado palavras para denegrir o seu homólogo turco e a intervenção francesa de agosto em socorro de Atenas foi mais do que simples solidariedade europeia.

A Líbia é uma antiga possessão francesa e Paris mantém interesses concretos sobre o território, apoiando os esforços do general Khalifa Aftar para controlar Tripoli e o país contra o GAN, o qual tem o apoio da Irmandade Muçulmana, que tentou assumir o controlo do país após a queda do antigo ditador Muammar Khadafi.

Erdogan apoia regionalmente a Irmandade Muçulmana, ao passo que o homem forte do Egipto, Abdel Fatteh al-Sisi, chegou ao poder precisamente após afastar a Irmandade Muçulmana do Governo, que esta tinha conquistado com a Primavera Árabe. Apoia igualmente Aftar.

Erdogan e al-Sisi odeiam-se. E os recursos do Mediterrâneo Oriental tornaram-se mais um possível objeto de confronto entre ambos, num choque que ameaça envolver, muito além da Grécia e dos seus vizinhos europeus, países do Médio Oriente.
Mais do que ameças? Em princípio, não
O Azerbaijão declarou por exemplo o seu apoio incondicional a Erdogan. Ao receber as credenciais do novo embaixador grego no país, o Presidente azeri, Ilham Aliyev, há décadas no poder, lembrou o apoio turco às pretensões do Azerbaijão sobre a Arménia.

Após referir a recente tensão entre a Turquia e a Grécia no Mediterrâneo oriental, Aliyev não se poupou nas ameaças. "Posso dizer-vos e não é segredo, que a Turquia é não só nossa amiga e parceira, mas também para nós um país irmão. Sem qualquer hesitação, apoiamos a Turquia e iremos apoia-la em quaisquer circunstâncias. Vemos o mesmo apoio da parte dos nossos irmãos turcos. Eles apoiam o Azerbaijão em todas as questões e nós apoiamo-los em todos os assuntos, incluindo na questão da exploração do Mediterrâneo Oriental", afirmou.

Apesar de tudo, um cenário de conflito aberto é, para já, descartável.

A Alemanha, o principal poder da União Europeia, e lar de uma vasta comunidade turca - grande parte da qual opositora de Erdogan - mantém-se como mediadora entre Ancara e Atenas. E a posição de força grega será determinada por Bruxelas, cujos interesses não passam por qualquer guerra.

A Turquia, por outro lado, não tem qualquer interesse em atacar a Grécia, membro da NATO e da UE. Pretende, por enquanto, conseguir peso e influência, de forma a controlar a questão das migrações, as suas posições no norte da Síria contra a comunidade curda, e a Líbia e as suas ligações a África.

Está, além disso, aliada à Rússia e, de muitas formas, é Moscovo quem puxa os cordelinhos em Ancara. O Presidente russo, Vladimir Putin, não vê realmente qualquer interesse num conflito aberto com a NATO, a União Europeia e os Estados Unidos, ou com os principais aliados destes no Médio Oriente, a Arábia Saudita e Israel.
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