Moçambique. Crianças de 11 anos decapitadas por terroristas do ISIS

por Inês Moreira Santos - RTP
Rui Mutemba - Reuters

A província moçambicana de Cabo Delgado tem sido palco de um drama humanitário: há crianças que estão a ser assassinadas. A organização Save the Children denunciou a situação, esta terça-feira, revelando que as vítimas têm entre 11 e 12 anos e são decapitadas por grupos terroristas pertencentes ao Estado Islâmico.

A violência armada em Cabo Delgado tem provocado uma crise humanitária, com mais de duas mil mortes e 670 mil pessoas deslocadas, sem habitação, nem alimentos, na região norte de Moçambique. Mas agora a organização humanitária Save the Children veio denunciar uma situação que está a chocar o mundo.

As necessidades das crianças deslocadas nesta província do norte de Moçambique "superam em muito os recursos disponíveis para apoiá-las" e muitas vezes são alvo de violência.

"Crianças de apenas 11 anos estão a ser decapitadas na província moçambicana de Cabo Delgado (...), enquanto o conflito continua a desalojar milhares de pessoas", reportou, esta terça-feira, a ONG.



Estes ataques que duram há vários anos estão também a ter consequências graves, como a fome severa, entre as pessoas deslocadas. O conflito em Cabo Delgado começou em 2017, quando terroristas começaram a atacar a região - principalmente membros de grupos do Estado Islâmico (ISIS) - , matando de forma indiscriminada, levando à morte mais de 2000 pessoas e à fuga mais de meio milhão de pessoas até ao momento.

"A ajuda é desesperadamente necessária, mas poucos doadores priorizaram a assistência para aqueles que perderam tudo e para os seus filhos", numa altura em que o mundo lida também com a covid-19, referiu Chance Briggs, diretor da organização em Moçambique, citado em comunicado.

"Enquanto o mundo estava focado na covid-19, a crise de Cabo Delgado cresceu e foi menosprezada"
, acrescentou.
ONG testemunha relatos "horríveis"

Pelo menos uma criança foi decapitada pelos extremistas na província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. E não é a primeira vez que a situação é reportada.

A organização não-governamental esteve na região e a denúncia surge a partir dos relatos de famílias deslocadas que descreveram "cenas horríveis" de assassinato, incluindo mães cujos filhos foram mortos.

Num dos casos, uma mulher de 28 anos, a quem supostamente a ONG chamou Elsa, viu o seu filho mais velho, "Filipe" de 12 anos, ser morto enquanto ela se escondia com os outros três filhos.

"Naquela noite, a nossa aldeia foi atacada e as casas foram queimadas. Quando tudo começou, eu estava em casa com meus quatro filhos. Tentamos escapar para a floresta, mas eles apanharam o meu filho mais velho e decapitaram-no. Não podíamos fazer nada porque também seríamos mortos", contou à Save the Children.

Outra mãe de quatro filhos, uma jovem de 29 anos com nome fictício de Amelia, relatou à ONG que o filho mais novo tinha apenas 11 anos quando foi morto por homens armados.

"Depois de o meu filho de 11 anos ter sido morto, percebemos que já não era seguro ficar na minha aldeia. Fugimos para a casa do meu pai noutra aldeia, mas alguns dias depois os ataques começaram ali também. Eu, o meu pai e os meus filhos passamos cinco dias a comer bananas verdes e a beber água de bananeira até conseguirmos o transporte que nos trouxe aqui", contou.

"Os relatos de ataques a crianças perturbam-nos profundamente. A nossa equipa foi levada às lágrimas ao ouvir as histórias de sofrimento contadas por mães em campos de deslocados", lamentou também Chance Briggs, citado no comunicado.

A Save the Children considera que a crise humanitária em Cabo Delgado foi "menosprezada" e alerta para a falta de ajuda para a população afetada.

"Quase 670 mil pessoas estão agora deslocadas dentro de Moçambique devido ao conflito em Cabo Delgado - quase sete vezes mais do que o número relatado há um ano", revela ainda a Save the Children. "Pelo menos 2.614 pessoas morreram no conflito, incluindo 1.312 civis. A situação piorou seriamente nos últimos 12 meses, com a escalada de ataques a aldeias".

Como reflexo da pirâmide etária do país, cerca de metade das pessoas afetadas pela violência são menores de 18 anos, presenciando muitas vezes morte e destruição e sendo elas próprias alvo das partes em conflito.

"Todas as partes devem garantir que as crianças nunca sejam alvos. Devem respeitar as leis humanitárias internacionais e de direitos humanos e tomar todas as medidas necessárias para minimizar os danos em civis, incluindo o fim de ataques indiscriminados e desproporcionais contra crianças", acrescentou a Briggs.

Além disso, segundo esta organização, "quase um milhão de pessoas enfrenta fome severa" como resultado direto da onda de deslocados provocada pelo conflito armado na região, incluindo pessoas deslocadas e comunidades anfitriãs.

"Uma grande preocupação para nós é que as necessidades das crianças deslocadas e das suas famílias em Cabo Delgado superam em muito os recursos disponíveis para apoiá-las", disse ainda o diretor da organização.

A província de Cabo Delgado está, paralelamente, ainda a recuperar de fenómenos climáticos, incluindo o ciclone Kenneth de 2019, o ciclone mais forte a atingir a parte norte de Moçambique, e as inundações que abalaram a região no início de 2020.

A Save the Children está, por isso, a tentar dar resposta às necessidades urgentes das crianças e às famílias deslocadas tanto pelos conflitos como pelos ciclones em Cabo Delgado.

"A resposta da organização atingiu mais de 70 mil pessoas, incluindo mais de 50 mil crianças, com programas de educação, proteção infantil, saúde (incluindo medidas contra a Covid-19) e água e saneamento", lê-se ainda no comunicado da ONG.

No ano passado, foi registado um considerável aumento de ações do grupo extremista jihadista, que passou a raptar pessoas e ocupar cidades, como foi o caso de Mocímboa da Praia, que tem um estratégico porto na região rica em recursos naturais. Algumas das incursões de rebeldes foram reivindicadas pelo grupo do Estado Islâmico entre junho de 2019 e novembro de 2020, mas a origem dos ataques continua sob debate.

A brutalidade também continuou, com assassinatos em massa, incluindo o assassinato de cerca de 52 pessoas na aldeia de Xitaxi, em abril de 2020.

Os rebeldes que reivindicam estes ataques são conhecidos localmente como al-Shabab e declararam lealdade ao Daesh em 2019 - Al-Shabab significa "A Juventude" em árabe, e segundo Aljazeera, o nome reflete que o grupo extremista é composto e apoiado principalmente por jovens desempregados na região predominantemente muçulmana de Cabo Delgado.

A embaixada dos Estados Unidos em Moçambique disse, na segunda-feira, que as forças especiais norte-americanas vão treinar fuzileiros navais moçambicanos durante dois meses, com o país também a fornecer equipamento médico e de comunicações para ajudar no combater à insurgência.

Já a Amnistia Internacional concluiu, no início deste mês, que têm sido cometidos crimes de guerra por todas as partes envolvidas no conflito, acusando as forças governamentais de serem também responsáveis pelos abusos contra civis - uma acusação que o Governo moçambicano nega.
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