Nações Unidas querem que práticas de tortura da CIA cheguem à justiça

Simulação de afogamentos, privação de sono, banhos frios e hidratação retal foram algum dos métodos de tortura utilizados pela CIA na primeira década do século XXI. Métodos que atentam contra os Direitos Humanos e que, acredita-se agora, não terão dado nenhum contributo decisivo na luta contra o terrorismo. As Nações Unidas e algumas organizações não-governamentais exigem que o processo chegue à justiça.

Christopher Marques, RTP /
Mark Wilson, Reuters

Depois de ter sido tornado público um sumário do relatório realizado pelo Senado, organizações de defesa dos Direitos Humanos exigem que sejam prosseguidas ações judiciais contra os responsáveis pelo programa. Também as Nações Unidas consideram que este relatório não pode cair em saco roto.

“De acordo com o direito internacional, os Estados Unidos estão legalmente obrigados a levar os responsáveis à justiça”, considera o relator especial da ONU para os Direitos Humanos e contra terrorismo.

Para Ben Emmerson, o procurador-geral dos Estados Unidos tem o “dever legal” de avançar com um processo criminal contra os responsáveis.
ONG querem processo judicial
Várias organizações de defesa dos Direitos Humanos já vieram a público fazer a mesma exigência. A Amnistia Internacional considera que não existem “circunstâncias excecionais” que possam justificar o recurso à tortura.
A Human Rights Watch considera mesmo que só com processos judiciais é que se pode evitar que estas práticas se repitam.

“A não ser que este processo de revelação da verdade conduza a processos judiciais, a tortura continuará a ser uma opção política para futuros presidentes”, afirma Kenneth Roth, diretor executivo da organização.


A divulgação do relatório “torna claro que o Governo norte-americano recorreu ao uso da tortura. A tortura é um crime e os responsáveis pelos crimes devem ser levados à justiça”, referiu o diretor da Amnistia Internacional nos EUA, num comunicado citado pelo jornal britânico The Guardian.

A American Civil Liberties Union pede mesmo que o procurador-geral nomeie um responsável pela condução de “uma investigação completa e independente dos responsáveis da administração Bush que criou, aprovou, realizou e deu cobertura ao programa de tortura”.
Cheney defende interrogatórios
Enquanto se multiplicam as condenações ao programa norte-americano, também já há quem tenha assumido a defesa pública dos procedimentos seguidos pela agência.

Membros da Administração Bush vieram já defender publicamente o programa de interrogatórios da CIA. O vice-presidente dos governos de George W. Bush considera mesmo que os interrogatórios eram “absolutamente, totalmente justificados”.

“Quando tivemos o programa em vigor, mantivemos o país a salvo de ataques em massa, que era o nosso objetivo”, defendeu Dick Cheney ao New York Times. Uma ideia também defendida por operacionais da CIA.
"A CIA salvou vidas"
Antigos responsáveis da agência lançaram já uma verdadeira campanha de comunicação para apresentarem a sua versão dos factos. No site ciasavedlives.com, operacionais da CIA defendem que os procedimentos seguidos permitiram salvar vidas. Defendem a “eficácia” e “legalidade” dos métodos utilizados.“Criámos este site para apresentar documentos que demonstram que o programa foi autorizado pelo Presidente, supervisionado pelo Conselho de Segurança Nacional e considerado legal pelo Procurador-Geral dos Estados Unidos por diversas vezes”, revelam os autores do projeto.

Os responsáveis pelo site lamentam que o relatório não tenha nenhuma informação sobre o “contexto que os EUA enfrentaram no pós-11 de setembro”. Referem que havia fortes evidências que a Al Qaeda procurava armas nucleares, que a organização terrorista tentava produzir antrax e que se estaria na iminência de um novo ataque.

“Parecia uma bomba-relógio”, justificam os antigos agentes, referindo ainda que estavam cientes de que as suas decisões, “embora com autorização legal e política, seriam questionadas anos mais tarde”.

“Mas também compreendemos que seríamos moralmente culpados pela morte dos nossos cidadãos se falhássemos na obtenção de informação que pudesse evitar novos ataques”, garantem, justificando os processos seguidos.

Os antigos responsáveis refutam ainda que o programa não tenha tido resultados relevantes, revelando que terá permitido a captura de líderes da Al Qaeda e contribuído para a captura de Osama bin Laden. Uma informação que é contrária ao divulgado pelo relatório do Senado.
O relatório
Ao todo, o relatório apresentado esta terça-feira é composto por mais de seis mil páginas. Por agora, apenas um sumário de 500 páginas foi tornado público, que representa já uma enorme crítica ao sistema de interrogatórios desenvolvidos pela CIA no pós-11 de Setembro.

As práticas foram seguidas entre 2001 e 2007, durante as administrações do Presidente George W. Bush.

Além dos métodos de tortura utilizados pela CIA na primeira década do século XXI, o relatório revela que estes não terão tido nenhum contributo decisivo na luta contra o terrorismo.
(Reportagem de Armando Seixas Ferreira)

“As técnicas de interrogação sob coação da CIA nunca levaram à recolha de informação sobre uma ameaça iminente que muitos acreditam justificavam a utilização destas técnicas”, revelou a presidente da Comissão dos Serviços Secretos do Senado.

A agência terá mesmo impedido a supervisão por parte do Congresso e da Casa Branca e inclusivamente contrariado as missões de segurança nacional de outras agências, como o FBI. O relatório revela ainda que a CIA utilizou “declarações falsas” para justificar a eficácia dos métodos utilizados.

O relatório conclui que os interrogatórios tiveram um preço financeiro muito elevado e contribuíram para denegrir as relações diplomáticas dos EUA.

“Fizemos inúmeras coisas corretas, mas torturámos algumas pessoas. Fizemos coisas que eram contrárias aos nossos valores”, lamentou Barack Obama, responsável pela suspensão do programa em 2009.

“Espero que este relatório contribua para deixar estas práticas onde elas pertencem: no passado", afirmou o Presidente dos Estados Unidos.
Cumplicidade Europeia
A divulgação do relatório da CIA volta a trazer para o debate público o papel que alguns países europeus terão desempenhado nas missões da agência norte-americana. Os grupos parlamentares dos liberais e ecologistas apelaram aos estados-membros para que quebrem o silêncio.

“Esta nova evidência vem impor aos estados-membros da União Europeia que reconheçam, por sua vez, as suas responsabilidades”, afirma a eurodeputada ecologista Eva Joly, citada por Le Monde.A participação de Estados europeus na detenção e transporte de prisioneiros americanos para as instalações da CIA tem sido investigada pelo Parlamento Europeu desde 2006.

No âmbito de uma investigação do Parlamento Europeu, foram recenseados cerca de um milhar de voos clandestinos e confirmada a existência de três prisões secretas em solo europeu: na Roménia, Polónia e Lituânia. As autoridades polacas foram mesmo condenadas pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por cumplicidade em atos de tortura.

O Parlamento Europeu já pediu mesmo à Comissão para contribuir para tornar mais claro o papel de países como a Alemanha, o Chipre, a Dinamarca, a Espanha, a Grécia, a Irlanda e a Suécia em missões da CIA. Também a Áustria, a Itália, o Reino Unido e Portugal foram postos em causa devido à sua falta de colaboração.
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