Nepaleses ao serviço da Rússia. De Catmandu para a linha da frente da guerra na Ucrânia

por Carla Quirino - RTP
Atit Chettri via X

Desde o início da invasão à Ucrânia que a Rússia começou a recrutar centenas de homens nepaleses, prometendo cidadania e um salário elevado àqueles que se alistassem para lutar por Moscovo. Foi desencadeada uma campanha de recrutamento em massa, considerada ilegal pelo Governo nepalês, que levou muitos homens, mesmo sem experiência militar, para a linha da frente em solo ucraniano.

O presidente russo, Vladimir Putin, anunciou publicamente, em março de 2022, que seria atribuída cidadania, a somar a um ordenado elevado, a todos os que se alistassem nas forças do país.

As redes de tráfico humano aproveitaram a campanha russa de recrutamento para o exército, feita sobretudo nas redes sociais, e rapidamente um êxodo de nepaleses preencheu as fileiras de militares contra a Ucrânia.

O Governo nepalês estima que cerca de 200 homens tenham saído do país como mercenários, mas de acordo com analistas citados pela Al Jazeera os números sobem para um milhar. Já a CNN fala em 14 a 15 mil, de acordo com fontes da oposição política nepalesa.

Ramchandra Khadka tem 37 anos e regressou recentemente ao Nepal, depois de sofrer ferimentos na linha da frente na Ucrânia. Atingido por uma bala e estilhaços de uma bomba, afirma à CNN que testemunhou “cenas horríveis” e lamenta a “decisão de se juntar ao exército do Kremlin como mercenário estrangeiro”.

As estimativas são em grande medida baseadas nas queixas de famílias de recrutas recebidas pelo Ministério nepalês dos Negócios Estrangeiros, explicou Santosh Sharma Poudel, analista de política externa e co-fundador do Instituto Nepal para a Investigação Política.
Em busca de melhor salário
Muitos nepaleses que partiram para a Rússia saíram diretamente da capital, Catmandu, e as circunstâncias financeiras estão na base da decisão de se alistarem no exército de Putin.


Nelapeses a partirem rumo à Rússia | Foto de Atit Chettri - página X de Mahalaxmi Ramanathan

Atit Chettri, um jovem de 25 anos de Surkhet, no oeste do Nepal, desempregado, sonhava com uma vida na Europa e estava na espectativa de conseguir viajar para Portugal.

Bimal Bhandari, um mercenário de 32 anos do Nepal que desertou do exército russo, explicou: “A condição económica da minha família é miserável, então pensei que isto seria um bom avanço”.

Poudel corrobora a tendência entre os nepaleses de ir para o exterior como o Médio Oriente ou a Europa em busca de melhor provento. “O rendimento médio per capita no Nepal é de cerca de 900 euros por ano”. Em comparação, o salário anunciado para se juntar ao exército russo é “cerca de 3.700 euros por mês, o que é enorme”, sublinha.

“Nem todos os que partiram estão a receber o valor anunciado. Porém, o pagamento é significativamente maior do que o que eles receberiam aqui”, acrescentou.
Recrutamento nas redes sociais
Testemunhos de homens nepaleses que conseguiram regressar a casa revelam que a rede social TikTok apresentou-se muito ativa na divulgação do recrutamento russo. Contam ainda que, quando responderam ao anúncio, foram prontamente abordados por uma agência de viagens no Nepal. Quem estivesse interessado em ir para a Rússia era exigido o pagamento imediato de uma taxa.

Um homem nepalês que não quis ser identificado explica que foi recrutado em outubro de 2023 e pagou mais de oito mil euros. “Em troca foi-me prometido um salário mensal de cerca de 2800 euros, juntamente com benefícios, incluindo a cidadania russa”, tanto para ele como para a família.

Também Chettri, ao ver um vídeo no TikTok sobre os nepaleses a serem recrutados para o exército russo, pensou que estava ali uma oportunidade. Depois de pagar a taxa, esperou quatro dias para ter um visto de turista russo e um bilhete para Moscovo via Dubai, reservado para 21 de outubro de 2023. Chettri recebeu sempre menos da metade do que lhe foi prometido.

Quando chegou à Rússia, Bimal Bhandari descreve que foi recebido num campo de recrutamento e apresentado um contrato de um ano para lutar como soldado, documento que assinou. Após três meses de guerra, Bhandari diz que nunca não foi pago.

Seguiu-se a formação. Em vez do prometido treino intensivo de três meses, os testemunhos falam de menos de um mês de exercícios, junto à fronteira com a Ucrânia na região de Rostov.

Ramchandra Khadka, em Bakhmut,na Ucrânia, onde lutava pela Rússia | Foto de Ramchandra Khadka - página do X de Oriannalyla

Os recém-recrutas nepaleses julgavam que ficariam na reserva para continuarem o treino. Todavia, foram empurrados para frente de combate. “Eles colocaram-nos todos na frente. Os russos apenas nos davam ordens e ficavam a trás. Nós eramos o escudo protetor deles”, explicou Ratna Karki, recruta de 34 anos, à Al Jazeera.

Poudel alega que “eles foram treinados durante muito poucos dias, e em alguns casos, nem uma semana. Depois foram enviados para as linhas de frente, basicamente como dispensáveis”.
Desaparecidos ou mortos
Bharat Shah, de 36 anos, também não resistiu à oferta. Em 26 de novembro, foi morto em combate.

Ganesh tem 35 anos, conseguiu regressar ao Nepal depois de passar quatro meses e meio a combater em Donetsk. Relata experiências angustiantes, descrevendo como os recrutas nepaleses foram rebaixados e “tratados como cães”.

Pelo menos 13 nepaleses foram mortos no teatro de guerra e outros cinco capturados pela Ucrânia. No entanto, políticos e ativistas argumentam que esses números subestimam a verdadeira extensão do envolvimento nepalês. Entretanto, relativamente a muitos outros, as famílias desconhecem o paradeiro. Ou ainda, quem quer desvincular-se do contrato e regressar a casa, é impedido pelos russos.

As famílias pedem agora o retorno de filhos presos nos em campos de batalha.

Kritu Bhandari é uma ativista social e política a viver em Catmandu. Ajuda um grupo de familiares a saberem notícias dos que viram partir. Kritu afirma serem "cerca duas mil famílias" que relevam a falha de contato com filhos ou maridos.

Há três meses que o marido de Januka Sunar, o único sustento da casa, partiu para a Rússia para integrar o exército e deixou de dar notícias há dois meses e meio. Jacuna diz o marido iria ser transferido para um lugar de combates e que não podia levar telefone. 

"Estou muito preocupada. Eu não sei o que lhe aconteceu. Pode estar ferido", explica a mulher, também mãe de dois filhos. “Se lhe aconteceu o pior, para nós será ainda pior do que ir para o inferno. Não temos futuro para o resto de nossas vidas”, remata.

Foi solicitada a intervenção do Governo, que responde: “Estamos em comunicação regular com o governo russo ao qual pedimos a lista de nomes de recrutas nepaleses, para repatriá-los em breve, incluindo o envio de cadáveres, assim como serem atribuídas indemnizaçõe às famílias dos falecidos”.

O ministro dos Negócios Estrangeiros do Nepal, NP Saud, acrescenta que o homólogo russo lhe garantiu que iria “resolver o problema” mas reconhece não ter “qualquer informação de que a Rússia esteja a fazer alguma coisa”.

Entretanto, a polícia de Catmandu alega ter desmantelado uma rede, colocando na prisão de 18 pessoas suspeitas de envolvimento no envio de homens nepaleses para o exército russo. As autoridades acrescentam que o fluxo de partidas diminuiu, mas não parou.
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