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Pirow, o nazi que enganou Salazar e pediu perpétua para Mandela
Oswald Pirow foi, até 1939, ministro da Defesa do Governo sul-africano e, durante toda a vida, líder do lobby nazi no país. Em 1938 entrevistou-se com Salazar e enganou-o sobre um suposto plano para afastar a Alemanha do continente africano. Vinte anos depois, foi ele o primeiro procurador público que pediu ao tribunal uma pena de prisão perpétua para Nelson Mandela.
Em 26 de Outubro de 1938, Pirow chegou a Lisboa para uma visita de três dias, que iniciava uma tournée europeia. Vinha a pretexto de discutir com o Governo português a criação de uma linha aérea, mas na realidade acabou por ter conversas de carácter muito mais amplo com Salazar.
Como Pirow enganou SalazarOs dois interlocutores sabiam que o Governo britânico estava por essa altura a explorar febrilmente a possibilidade de apaziguar os apetites da Alemanha na Europa central, reconhecendo-lhe em compensação direitos sobre as três colónias africanas que a mesma Alemanha perdera no fim da Primeira Guerra Mundial. Mais, sabiam ambos que, apesar de acenar à Alemanha nazi com um isco africano, Chamberlain se opunha a entregar a Hitler precisamente aquelas colónias que tinham sido alemãs.
Deste duplo conhecimento resultava uma óbvia ansiedade do regime salazarista, sobre a hipótese de a “pérfida Albion” mais uma vez oferecer as colónias portuguesas (e as belgas) à Alemanha, como moeda de troca para um negócio europeu. Consciente dos interesses portugueses, Pirow comunicou a Salazar que a África do Sul ia antecipar-se a Londres no reconhecimento dos direitos africanos da Alemanha.
Se a compensação pela perda desses direitos fosse de carácter territorial, os dois primeiros Governos com administração de colónias a serem sacrificados seriam Portugal ou a própria África do Sul. Esta ocupava, com efeito, o Sudoeste Africano, actual Namíbia, antiga colónia alemã. Mas Pirow logo acrescentou que a compensação proposta pela África do Sul seria de carácter pecuniário.
Salazar acreditou nas juras de Pirow e escreveu ao embaixador português em Londres, Armindo Monteiro: “Nitidamente o desejo [do] Governo actual [da União Sul-Africana] é não ter novos vizinhos naquelas regiões estreitando laços de amizade com colónias pacíficas vizinhas”. Dias depois acrescentava, em mensagem ao mesmo destinatário que a visita de Pirow mantivera “sempre carácter amistoso, sendo inteiramente inexacto que aqui tivesse posto questão [da] satisfação [de] reivindicações coloniais alemãs por compensações nossas ou belgas”.
Por uma vez, o suspicaz ditador de Santa Comba fora enganado. De Lisboa, Pirow seguiu para Bruxelas e depois para Berlim, onde disse a Hitler algo totalmente diferente do que dissera a Salazar. Mas, antes ainda de a posteridade conhecer pelas actas da visita à Alemanha a duplicidade do ministro sul-africano, já o encarregado de negócios português em Pretória, Ferreira da Fonseca, avisara Salazar de que na imprensa sul-africana se falava à boca cheia de um plano de compensações territoriais a propor na Europa. Tendo pedido uma audiência ao presidente Herzog, o diplomata saíra dela convencido da veracidade da versão publicada na imprensa e da insinceridade dos desmentidos presidenciais.
E, na verdade, as actas conhecidas muito mais tarde sobre os encontros Hitler-Pirow mostram que o ministro sul-africano, recebido cerca de duas semanas depois do grande pogrom anti-semita de 9 de novembro, nem mencionou a tal compensação em dinheiro de que falara a Salazar. A sugestão que fez a Hitler foi a de deportar para África os judeus, de quem queria desfazer-se. Com esta proposta, não se estava já muito longe do plano de deportação de milhões de judeus para Madgáscar, com o seu significado genocida, tal como viria a ser estudado dois anos depois.
Hitler objectou que a Alemanha não tinha colónias e Pirow replicou-lhe que, para essa “boa causa”, certamente poderia contar com a compreensão de Chamberlain e com a cedência de colónias apropriadas. Mas o ditador nazi não estava interessado, porque a sua prioridade inequívoca era a expansão na Europa central.
Depois da carreira política, a carreira judicialApesar de não poder, para já, contar com um a presença física no continente africano da potência imperialista que mais admirava, Pirow parece ter continuado durante algum tempo a alimentar um ambicioso projecto político, patrocinando no Partido Nacional a cisão da ala mais extemista, a Nova Ordem. Mas a vitória do partido branco aliadófilo, encabeçado pelo general Jan Smuts, havia de levar a África do Sul para a guerra e reduzir Pirow à irrelevância política.
A sua carreira em Ministérios e chancelarias tinha terminado.Mas Pirow continuou, de forma praticamente ininterrupta, a divulgar uma circular periódica de extrema-direita. As suas relações internacionais, depois da derrota da Alemanha nazi, tinham como pivot o partido britânico pró-nazi de Oswald Mosley.
Mesmo no regime do apartheid um germanófilo assumido como Pirow deixara de ser frequentável depois da guerra. Mas continuava a disfrutar de posições de algum poder no aparelho judicial. Por isso lhe foi confiada, em 1956, a acusação contra os membros do ANC submetidos a julgamento. Foi ele que pediu para Nelson Mandela a pena de prisão perpétua.
Pirow morreu em 1959 e o processo contra dezenas de dirigentes do ANC prosseguiu até 1961. Terminou com a absolvição dos réus. Mas um novo julgamento, três anos depois, havia de concluir-se com a sentença de prisão perpétua contra Mandela.
A versão hoje corrente, que menoriza a estatura do Mandela lutador anti-apartheid, e hiperboliza o significado do Mandela que "perdoou" a carrascos e carcereiros, teve já na altura um breve prelúdio. Com efeito, Pirow notabilizou-se por ter tratado com aparente civilidade formal os réus que pretendia enclausurar para a vida inteira. Dizia-se que essa civilidade se devia em parte à admiração que nele suscitara a integridade do réu Mandela. Mas a partir daí criou-se também a lenda de que Mandela teria homenageado a correcção de linguagem do seu algoz. Com quase quatro décadas de antecedência, ensaiava-se já o discurso da conciliação pós-apartheid.
Como Pirow enganou SalazarOs dois interlocutores sabiam que o Governo britânico estava por essa altura a explorar febrilmente a possibilidade de apaziguar os apetites da Alemanha na Europa central, reconhecendo-lhe em compensação direitos sobre as três colónias africanas que a mesma Alemanha perdera no fim da Primeira Guerra Mundial. Mais, sabiam ambos que, apesar de acenar à Alemanha nazi com um isco africano, Chamberlain se opunha a entregar a Hitler precisamente aquelas colónias que tinham sido alemãs.
Deste duplo conhecimento resultava uma óbvia ansiedade do regime salazarista, sobre a hipótese de a “pérfida Albion” mais uma vez oferecer as colónias portuguesas (e as belgas) à Alemanha, como moeda de troca para um negócio europeu. Consciente dos interesses portugueses, Pirow comunicou a Salazar que a África do Sul ia antecipar-se a Londres no reconhecimento dos direitos africanos da Alemanha.
Se a compensação pela perda desses direitos fosse de carácter territorial, os dois primeiros Governos com administração de colónias a serem sacrificados seriam Portugal ou a própria África do Sul. Esta ocupava, com efeito, o Sudoeste Africano, actual Namíbia, antiga colónia alemã. Mas Pirow logo acrescentou que a compensação proposta pela África do Sul seria de carácter pecuniário.
Salazar acreditou nas juras de Pirow e escreveu ao embaixador português em Londres, Armindo Monteiro: “Nitidamente o desejo [do] Governo actual [da União Sul-Africana] é não ter novos vizinhos naquelas regiões estreitando laços de amizade com colónias pacíficas vizinhas”. Dias depois acrescentava, em mensagem ao mesmo destinatário que a visita de Pirow mantivera “sempre carácter amistoso, sendo inteiramente inexacto que aqui tivesse posto questão [da] satisfação [de] reivindicações coloniais alemãs por compensações nossas ou belgas”.
Por uma vez, o suspicaz ditador de Santa Comba fora enganado. De Lisboa, Pirow seguiu para Bruxelas e depois para Berlim, onde disse a Hitler algo totalmente diferente do que dissera a Salazar. Mas, antes ainda de a posteridade conhecer pelas actas da visita à Alemanha a duplicidade do ministro sul-africano, já o encarregado de negócios português em Pretória, Ferreira da Fonseca, avisara Salazar de que na imprensa sul-africana se falava à boca cheia de um plano de compensações territoriais a propor na Europa. Tendo pedido uma audiência ao presidente Herzog, o diplomata saíra dela convencido da veracidade da versão publicada na imprensa e da insinceridade dos desmentidos presidenciais.
E, na verdade, as actas conhecidas muito mais tarde sobre os encontros Hitler-Pirow mostram que o ministro sul-africano, recebido cerca de duas semanas depois do grande pogrom anti-semita de 9 de novembro, nem mencionou a tal compensação em dinheiro de que falara a Salazar. A sugestão que fez a Hitler foi a de deportar para África os judeus, de quem queria desfazer-se. Com esta proposta, não se estava já muito longe do plano de deportação de milhões de judeus para Madgáscar, com o seu significado genocida, tal como viria a ser estudado dois anos depois.
Hitler objectou que a Alemanha não tinha colónias e Pirow replicou-lhe que, para essa “boa causa”, certamente poderia contar com a compreensão de Chamberlain e com a cedência de colónias apropriadas. Mas o ditador nazi não estava interessado, porque a sua prioridade inequívoca era a expansão na Europa central.
Depois da carreira política, a carreira judicialApesar de não poder, para já, contar com um a presença física no continente africano da potência imperialista que mais admirava, Pirow parece ter continuado durante algum tempo a alimentar um ambicioso projecto político, patrocinando no Partido Nacional a cisão da ala mais extemista, a Nova Ordem. Mas a vitória do partido branco aliadófilo, encabeçado pelo general Jan Smuts, havia de levar a África do Sul para a guerra e reduzir Pirow à irrelevância política.
A sua carreira em Ministérios e chancelarias tinha terminado.Mas Pirow continuou, de forma praticamente ininterrupta, a divulgar uma circular periódica de extrema-direita. As suas relações internacionais, depois da derrota da Alemanha nazi, tinham como pivot o partido britânico pró-nazi de Oswald Mosley.
Mesmo no regime do apartheid um germanófilo assumido como Pirow deixara de ser frequentável depois da guerra. Mas continuava a disfrutar de posições de algum poder no aparelho judicial. Por isso lhe foi confiada, em 1956, a acusação contra os membros do ANC submetidos a julgamento. Foi ele que pediu para Nelson Mandela a pena de prisão perpétua.
Pirow morreu em 1959 e o processo contra dezenas de dirigentes do ANC prosseguiu até 1961. Terminou com a absolvição dos réus. Mas um novo julgamento, três anos depois, havia de concluir-se com a sentença de prisão perpétua contra Mandela.
A versão hoje corrente, que menoriza a estatura do Mandela lutador anti-apartheid, e hiperboliza o significado do Mandela que "perdoou" a carrascos e carcereiros, teve já na altura um breve prelúdio. Com efeito, Pirow notabilizou-se por ter tratado com aparente civilidade formal os réus que pretendia enclausurar para a vida inteira. Dizia-se que essa civilidade se devia em parte à admiração que nele suscitara a integridade do réu Mandela. Mas a partir daí criou-se também a lenda de que Mandela teria homenageado a correcção de linguagem do seu algoz. Com quase quatro décadas de antecedência, ensaiava-se já o discurso da conciliação pós-apartheid.