Precariedade nas empresas mais sólidas da Alemanha

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira. Edição: Nuno Patrício, Pedro Pina
Fabrizio Bensch, Reuters

A indústria automóvel e a Lufthansa são dois casos bem conhecidos pelas boas condições de que os trabalhadores aí disfrutaram durante décadas. Agora, tudo isso está a mudar.

Com a entrada em vigor da reforma do mercado de trabalho conhecida como "Agenda 2010", foram criados milhões de empregos precários, em start ups ou em empresas de pequena e média dimensão que só se decidiram a novas contratações quando viram garantias de poderem fazê-las a um preço muito baixo e sem vínculo com o trabalhador.

Mas também ramos industriais com larga tradição de bons salários e de regalias sociais consideráveis começaram a ser tocados, de forma cada vez mais significativa, pelo fenómeno da precarização. Ali Redha, membro da Comissão de Trabalhadores da Lufthansa, descreveu à RTP como esse fenómeno se foi instalando, por diversas vias, na empresa que era um modelo de estabilidade na economia alemã.

Um dos exemplos que dá Redha é o do handling, anteriormente garantido pela própria Lufthansa, e depois endossado a uma empresa, a Wisag, originariamente dedicada à limpeza.

Na mesma actividade de handling, chega-se mais longe do que externalizá-la a uma empresa, como a Wisag, que leva a cabo essa actividade recorrendo aos seus próprios trabalhadores. Com efeito, a outra modalidade de externalização, ainda mais sofisticada, consistiu na criação de uma empresa dedicada ao handling, a GlobeGround, em parte por iniciativa da própria Lufthansa.

Essa empresa contou com trabalhadores da Lufthansa, com a vantagem da formação que já tinham obtido na empresa-mãe, e ainda por cima contratados por salários inferiores após uma transferência feita sob pressão. E toda a história posterior foi a de sucessivos cortes salariais, em nome da viabilidade da GlobeGround, até finalmente esta declarar a falência.

Para além do caso mais conhecido da externalização do handling, há outros, como o dos call centers, que têm levado a Lufthansa ainda mais longe, na procura de mão-de-obra barata que substitua os milhares de postos de trabalho destruídos na Alemanha. Neste caso, a transportadora aérea foi bem longe, até às Filipinas, onde acabou por instalar os seus call centers.

O processo de destruição de postos de trabalho prossegue, entretanto, com o encerramento previsto ainda para o ano 2017 de todos os balcões de check in da Lufthansa na Alemanha, com excepção de Frankfurt e Munique.

Em geral no conjunto da Alemanha, um outro meio para a precarização do trabalho tem sido a grande expansão registada pelo aluguer de mão-de-obra. A indústria automóvel, também ela um tradicional baluarte de direitos sociais, de bons níveis salariais e de forte organização sindical, é um ramo da economia que tem vivido um alastramento galopante desta modalidade de precarização.

Ao interesse dos industriais, juntou-se a atitude prestimosa dos políticos. O aluguer de mão-de-obra passou, de proibido que era, a tolerado, inicialmente com grandes limitações. Depois, também essas limitações foram caindo - com avanços e recuos que dependem da pressão social, mas com uma tendência global marcadamente desregulamentadora.

Benedikt Hopmann, advogado e especialista em Direito do Trabalho, antigo deputado no parlamento regional de Berlim, descreveu à RTP este processo de desregulamentação.

Como exemplo concreto, Hopman refere a fábrica da Daimler em Berlim, Marienfelde, onde ainda recentemente não havia trabalhadores alugados. A excepcionalidade da Daimler-Marienfelde, até há pouco um motivo de orgulho para os seus trabalhadores, perdeu-se entretanto e também aí entraram as empresas alugadoras de mão-de-obra.

Em todo o caso, a precarização foi com frequência justificada como necessidade da economia em tempo de crise. Coloca-se entretanto a questão de saber se, superada a crise e proclamados os sucessos mais recentes da indústria automóvel, esta não se dispõe a travar a precarização. A RTP colocou a questão ao presidente da associação de industriais do ramo automóvel da Alemanha, Mathias Wissmann, que respondeu negativamente, invocando os constrangimentos de um mercado fortemente disputado.

A aplicação da "Agenda 2010" pareceu poupar inicialmente os grandes baluartes da "economia social de mercado", como eram a indústria automóvel ou a Lufthansa. Mas os seus efeitos foram alastrando da periferia para o centro e atingem agora o coração da economia alemã.

Também nesse centro começou por haver pequenos focos de precariedade que entretanto foram contaminando o conjunto das relações laborais.

A paisagem industrial encontra-se completamente subvertida, mesmo naqueles que eram os casos mais emblemáticos de bem-estar e de direitos sociais.
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