Recrutamento de ultraortodoxos abre frente de divisão em Israel

Os judeus ultraortodoxos estão a resistir até ao limite à ordem de recrutamento para o Exército israelita, com base numa exceção já declarada inconstitucional, conduzindo protestos nas principais cidades do país, frequentemente incompreendidos e acompanhados de episódios de tensão.

Lusa /
Ammar Awa - Reuters

Ao pôr do sol de quinta-feira, milhares de jovens da minoria Haredi saíram às ruas de Jerusalém, juntando a hora de ponta do já desafiante trânsito habitual, a um bloqueio da entrada oeste da cidade, num novo gesto de insurgência contra o recrutamento militar, em plena operação terrestre de ocupação da Cidade de Gaza, e que já motivou numerosas detenções por desobediência.

Em causa, está a mobilização de um número estimado de 80 mil ultraortodoxos, que os seus representantes políticos e religiosos receberam como "uma declaração de guerra", com ondas de choque na coligação que sustenta o Governo, apesar de as Forças de Defesa de Israel (FDI) apontarem uma necessidade urgente de 12 mil novos efetivos, após à recente chamada de 60 mil reservistas para as suas operações na Faixa de Gaza.

Segundo os militares israelitas, apenas três mil ultraortodoxos foram alistados no último ano e muitos outros foram detidos por desobediência à ordem de recrutamento, incluindo dezenas no aeroporto Ben Gurion em Telavive, quando se preparavam para abandonar o país na peregrinação anual ao túmulo do rabino Nachman de Breslov, assinalada na próxima semana na Ucrânia.

Num endurecimento da sua oposição às ordens das forças armadas, uma multidão de homens vestidos de preto ocupou todas faixas dos acessos a Jerusalém junto da emblemática ponte das Cordas e bloqueou a autoestrada de ligação a Telavive, uma manifestação não autorizada e que foi dispersada à força pela polícia, à semelhança do que também aconteceu na capital israelita e noutros pontos do país.

Gritando palavras de ordem contra o recrutamento e as detenções que se seguiram, e evitando declarações aos jornalistas, os manifestantes acabaram por se retirar após terem semeado o caos em Jerusalém, e vários dedicaram-se de imediato à oração, nos seus murmúrios e movimentos pendulares, junto de uma grande parede onde se promovia um empreendimento imobiliário.

"Estou aqui porque os meus mandamentos exigem oração e estudo, não falam em pegar em armas", justifica sumariamente e sem vontade de se alongar Sholom, 25 anos, um dos participantes do protesto.

O jovem yeshiva (estudante de textos religioso) assegura que não é de todo sua intenção apresentar-se ao serviço do Exército, nem "desistir dos ensinamentos da Torá [livro que contém os textos sagrados judaicos] e da história da nação" e, mal acabou estas palavras, foi confrontado por um homem que deteve a sua marcha e o confrontou: "Vocês querem estudar ou lutar pelo vosso país?".

Na quarta-feira, o diretor de pessoal das FDI, Dado Bar Califa, foi chamado a depor em sede de comissão no Knesset (parlamento) e lamentou a existência de "buracos do tamanho de portões numa parede" que permitem aos judeus radicais recorrer a "um exército de psiquiatras e de advogados que preparam o que é chamado de `isenção`".

Citado na imprensa israelita, o mesmo general criticou a dispersão de elementos da Policia Militar para perseguir os refratários, em vez de se dedicarem a operações de segurança nas proximidades da Faixa de Gaza, e desafiou os deputados do Knesset: "Precisamos de soldados, não de detenções".

Os partidos que representam os ultraortodoxos têm feito pressão sobre o Governo chefiado por Benjamin Netanyahu para abandonar os planos de recrutamento, ou que, ao menos permita a peregrinação anual à Ucrânia, mas a Procuradoria-Geral da República enviou uma carta ao executivo no mês passado, indicando-lhe que não tem poderes para abrir exceções e que os mobilizados estão proibidos de sair do país sem autorização.

Após a guerra da independência, em 1948, foi dada aos ultraortodoxos a oportunidade de se isentarem do serviço militar, num acordo que inicialmente abrangia apenas algumas centenas de estudantes, mas que se foi alargando em grande escala numa comunidade estimada em cerca de 15% da população e que deverá aumentar substancialmente nos próximos anos, devido às suas elevadas taxas de natalidade.

Uma decisão do Supremo Tribunal declarou porém no ano passado que as isenções ao recrutamento eram inconstitucionais e a tensão começou a subir à medida que as ordens de recrutamento foram sendo distribuídas e perto de 90% não compareceram, levando a que os parceiros dos partidos ultraortodoxos abandonassem o acordo de coligação do Governo, o que colocou em causa a própria viabilidade de um executivo já em equilíbrio precário.

Ao fim de quase dois anos de guerra na Faixa de Gaza contra os islamitas do Hamas, a oposição aos planos militares de Netanyahu dá sinais de crescer, com taxas de desaprovação que se aproximam dos dois terços e Yogev, 47 anos, é um deles.

No entanto, expressou "total falta de compreensão" com os ultraortodoxos numa acesa discussão sob a Ponte das Cordas, iluminada com as cores de Israel, acompanhada de insultos dos automobilistas bloqueados.

Uma sondagem da organização Hiddush revelou na semana passada que 73% dos judeus israelitas veem a tensão entre as comunidades ultraortodoxos e seculares como um dos dois conflitos mais graves na sociedade, apenas atrás da divisão entre direita e esquerda.

O estudo da organização dedicada à liberdade de expressão e religiosa, citado pelo jornal Jerusalem Post, indicou também que 68% dos judeus israelitas apoiam uma coligação alargada sem os partidos ultraortodoxos no próximo governo, ou que os exclua em decisões que cabem ao Estado, como o estatuto de isenção no recrutamento militar.

"Os meus filhos estão no Exército neste momento, os nossos filhos estão a morrer e é ridículo e absurdo o que estes homens estão a fazer. Não deve haver privilégios para ninguém", declara Yogev, ainda que acredite que "esta guerra já é inútil e não vai a lado nenhum", ou pior: "Pode ser o nosso Vietname".

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