Pela primeira vez, médicos norte-americanos trataram um bebé com uma terapia personalizada de alteração de genes. À nascença, a criança tinha sido diagnosticada com um distúrbio genético grave que mata cerca de metade das pessoas afetadas no início da infância. Os cientistas afirmam que este avanço na medicina dedicada à reformulação do ADN demonstra potencial para o tratamento de doenças genéticas.
O bebé - conhecido como KJ -, nasceu com uma doença metabólica grave que corresponde à deficiência de CPS1, uma condição rara que afeta uma em 1,3 milhões de pessoas.
Também Miguel Ángel Moreno-Mateos, geneticista da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, se junta às vozes que veem este caminho com grande potencial: “Embora esta tenha sido uma abordagem muito específica, em parte motivada pela natureza devastadora da doença, representa um marco que demonstra que essas terapias são agora uma realidade”.
A CPS1 (Carbamoil-fosfato Sintetasa 1) é uma enzima envolvida no ciclo da ureia, que ajuda o corpo a remover a amónia (molécula NH3) do organismo, sendo esta um resíduo que tem de ser excretado.
Uma deficiência de CPS1 pode querer dizer que o doente não tem uma enzima hepática que converta a amónia em ureia, para que possa ser excretada na urina. Isto provocará uma acumulação de amónia no sangue, prevendo-se que possa danificar o fígado e outros órgãos, como o cérebro.
Muitos dos adultos que sofrem desta patologia recebem transplantes de fígado para deficiência de CPS1, mas os bebés com esta doença grave podem desenvolver maiores complicações, caso sejam operados.
Nesta semana, durante a reunião anual da Sociedade Americana de Terapia Genética e Celular, em Nova Orleães, foi anunciado que o paciente KJ melhorou depois de receber o tratamento experimental de modificação de genes individualizado.
Os especialistas também acentuaram que estes resultados abrem caminho a uma nova era na medicina de precisão aplicada ao genoma e neste caso específico oferece “mais esperança” à família de KJ.
Reescrito ADN do bebé KJ
Pela primeira vez, uma equipa médica nos Estados Unidos tratou um bebé recorrendo à nova técnica de modificar o ADN defeituoso.
Depois de os médicos terem identificado mutações no ADN à nascença de KJ, procuraram alterar os distúrbios genéticos causadores da deficiência de CPS1.
Especialistas do Hospital Infantil da Filadélfia e da Universidade da Pensilvânia começaram a trabalhar assim que o menino foi diagnosticado e completaram o complexo projeto - produção e testes de segurança da terapia personalizada ao longo de seis meses.
A edição genética aplicada é conhecida por CRISPR. É uma técnica de engenharia genética em biologia molecular pela qual os genomas de organismos vivos podem ser modificados, ou seja, pode corrigir a mutação causadora de doenças individuais de KJ.
O bebé KJ recebeu a primeira dose do tratamento por via de uma infusão em fevereiro, aos sete meses. Seguiram-se mais duas doses em março e abril. Num primeiro balaço, os médicos reportaram que KJ estava a melhorar, mas advertem que para futuro irá ser necessário manter uma rigorosa monitorização.
A equipa médica descreveu o meticuloso processo de identificar as mutações específicas por trás do distúrbio em causa. Só assim conseguiram “projetar uma terapia de edição de genes para corrigi-los e testar o tratamento e nanopartículas gordurosas necessárias para carregá-lo para o fígado”.
De acordo com os cientistas citados na publicação britânica The Guardian, a terapia usa um procedimento poderoso denominado edição de base, que pode “reescrever o código de DNA uma letra de cada vez”.
Os primeiros meses de vida de KJ foram passados no hospital, tendo sido sujeito a uma dieta restritiva. Logo que recebeu a primeira dose de tratamento, os médicos verificaram que estavam a conseguir aumentar a quantidade de proteína nos alimentos e usar menos medicação para remover o nitrogénio do organismo do bebé.
KJ com a família e médicos (Musunuru e Ahrens-Nicklas) após o dia da infusão | Hospital de Crianças da Filadélfia
Marco na medicina
Para Rebecca Ahrens-Nicklas, médica sénior da equipa, este marco só foi possível porque assenta em “anos e anos de progresso” no estudo da edição de genes. “Embora KJ seja apenas um doente, esperamos que seja o primeiro de muitos a beneficiar deste conhecimento”, acrescentou.
“A promessa da terapia genética de que ouvimos falar há décadas está a concretizar-se e vai transformar completamente a maneira como abordamos a medicina”, sublinhou Kiran Musunuru, da Universidade da Pensilvânia.