Reitor da mesquita de Paris apela à reforma das instituições do Islão

por Graça Andrade Ramos - RTP
Os representantes das principais religiões presentes em França, com o reitor da Mesquita de Paris, Dalil Boubaker, junto ao microfone Benoit Tessier - Reuters

Olhos postos na formação de religiosos islâmicos e uma reforma das instituições do Islão em França. São as duas grandes linhas que o reitor da mesquita da Paris espera ver seguidas pela comunidade muçulmana em França, no rescaldo de mais um atentado que, desta vez, vitimou um padre numa pequena igreja do norte do país e deixou outra pessoa entre a vida e a morte.

À saída de uma reunião esta manhã no Eliseu, com o Presidente François Hollande e outros representantes máximos religiosos franceses, Dalil Boubakeur começou por exprimir "em nome dos muçulmanos em França o luto profundo que eles sentem e o choque psicológico que têm sentido diante do anúncio deste sacrilégio blasfematório contrário a todos os ensinamentos da nossa religião".

Apelou depois a uma tomada "de consciência" sobre o que está "errado" com a forma como o mundo percebe o Islão.

"Há um contra-senso de valores", afirmou. "Esperávamos que, no futuro, chegasse a hora de os muçulmanos tomarem consciência do que não está bem nesta visão mundial dos Islão e que os muçulmanos de França estejam na linha da frente de uma formação muito mais atenta dos nossos religiosos e que daqui se coloque na agenda um sentimento de uma certa reforma das nossas instituições".

"Pudemos exprimir à Igreja Católica a nossa compaixão", declarou por seu lado Ahmet Ogras, vice-presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano, CFCM, ecoando um comunicado publicado na página Facebook da organização após o atentado de terça-feira. "O Daesh vai perder", garantiu ainda, referindo-se ao grupo Estado Islâmico, que tem estado na recente radicalização de milhares de jovens de todo o mundo.
Reforma das instituições
Boubaker, um médico de origem argelina, já cumpriu dois mandatos como presidente do CFCM, instituição criada em 2003 e considerada representante das 2.500 mesquitas existentes em França.

O CFCM tem apresentado nos últimos anos várias propostas de reforma sobre o rumo do Islão e de resposta ao discurso jihadista, mas a sua falta de eficácia concreta tem sido criticada pela maioria dos cerca de cinco milhões de muçulmanos residentes em França, a maior comunidade da Europa.Não é a primeira vez que as organizações oficiais de muçulmanos franceses têm tentado combater os jihadistas e a sua retórica.

Já em 26 de setembro de 2014, diante da grande mesquita de Paris, centenas de pessoas juntaram-se para rejeitar o assassínio de um refém francês, Hervé Gourdel, às mãos do Estado Islâmico.

"Nós, muçulmanos de França, dizemos parem com a barbaridade" afirmou Dalil Boubaker, então presidente do GFCM. Nessa ocasião a multidão, "muito calma" e maioritariamente masculina, fez um minuto de silêncio em homenagem a Gourdel.

Quatro meses depois, com os ataques contra o jornal satírico Charlie Hebdo, os 'soldados' do EI iniciavam uma série negra de atentados que fizeram quase 250 mortos e culminaram esta terça-feira com o assassínio de um sacerdote católico e um sermão em árabe diante do altar da igreja de uma pequena vila da Normandia.
Conselho teológico
Em maio de 2016 o CMFM anunciou a constituição de um "conselho teológico" de 22 membros, encarregado de elaborar um contra-discurso que responda à propaganda jihadista que domina a internet, uma iniciativa há muito esperada e tornada urgente pelos atentados e pelo recrutamento para a guerra sírio-iraquiana.

Anouar Kbibech, Presidente do Conselho Francês da Comunidade Muçulmana, que agrupa 2.500 mesquitas francesas, durante num encontro em março de 2016 entre representantes da comunidade islâmica francesa sobre a desradicalização dos muçulmanos no país. Foto: Reuters

"Esta nova instância dá uma nova dimensão à nossa organização, que já não se coloca unicamente a nível administrativo e de gestão", afirmou à agência France Presse o atual presidente do CFCM, Anouar Kbibech, falando de "um dia histórico".A reunião fundadora do "conselho teológico" deu-se num domingo e incluiu "todas as sensibilidades" do islão, incluindo a União das Organizações Islâmicas de França (UOIF, próxima da Irmandade Muçulmana egípcia) e do Tabligh (literalistas). O ramo salafista primou pela ausência.

O objetivo do conselho teológico, afirmou Anouar Kbibech será "aconselhar" (e não emitir fatwa's, precisou o presidente do CFCM) e "poderá elaborar um contra-discurso baseado num argumentário teológico sólido, em resposta aos discursos veiculados por alguns e que circulam nas redes sociais, nomeadamente entre os jovens", afirmou o comunicado da organização ao anunciar a constituição do novo órgão.

"Sobre noções como a jihad ou a hijra [a instalação em terras muçulmanas] são necessários conselhos esclarecidos, emitidos por personalidades competentes e credíveis".

Anouar Kbibech afirmou então que a criação do conselho teológico era um "pré-requisito" tendo em vista o projeto de "certificação" dos imãs, anunciado há vários meses, para garantir que os predicadores que intervêm nas mesquitas respeitem os valores republicanos.

O novo conselho poderia "recomendar" os imãs após uma audição ou um exame sobre essas questões, sublinhou o presidente do CFCM. Seria ainda "complementar" aos comités de especialistas religiosos já criados por algumas federações muçulmanas, nomeadamente um conselho teológico criado há mais de um ano por imãs ligados ao movimento da Irmandade Muçulmana.
Véu islâmico, uma invenção com 100 anos
O impacto do conselho teológico ainda está por avaliar. Mas sublinha as notas discordantes que dominam as várias sensibilidades islâmicas sobre tradição e culto. Como no caso do véu usado pelas mulheres, que está longe de ser consensual.

Em 2015, o site Cut.com criou um vídeo sobre a evolução do uso do véu no Irão nos últimos 100 anos, que denota as variantes que o mesmo assumiu em poucas dezenas de anos, e por vezes mesmo desapareceu, seguindo a moda e quem detinha o poder.

Como o próprio imã de Bordéus tem afirmado repetidamente - e voltou a dizê-lo a 7 de maio de 2016 - o véu não é imposto pelo Islão, mas apenas um sinal de pudor feminino.

"Uma muçulmana que não cobre os seus cabelos é tão muçulmana como aquela que não se cobre. O véu não faz a muçulmana", afirmou Tareq Oubrou, numa entrevista radiofónica da Europe 1.

"Não há hábito canónico. O profeta e as mulheres muçulmanas vestiam-se como os pagãos. O Islão não trouxe um novo vestuário", sustentou.

"É a moderação. Não se pode ditar à mulher como é que ela deve ser púdica".

"É a questão do sinal e da interpretação do sinal. Há tantos véus como percepções muçulmanas, porque as motivações não são as mesmas. Há aqueles que o seguem com conhecimento de causa, outros para se casarem", explicou o responsável pela comunidade islâmica de Bordéus.

"O véu é um invenção do século passado, antes as mulheres vestiam-se de acordo com a cultura do seu contexto" revelou.

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