Caracas continua sem reaver dinheiro retido no Novo Banco

Mary Flores, embaixadora da Venezuela em Portugal, diz que o Governo de Caracas ainda não conseguiu reaver todos os cerca de 1,3 mil milhões de euros de empresas públicas venezuelanas que estavam no Novo Banco.

Luís Peixoto - Antena 1 /

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Os fundos foram retidos pelo banco privado em 2019, quando Juan Guaidó se autoproclamou presidente interino, mas em 2023 o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa proferiu decisão favorável ao governo de Nicolás Maduro.

Na embaixada da Venezuela em Lisboa, na primeira entrevista enquanto embaixadora, a diplomata não esclarece se a razão para o bloqueio se deve ao Novo Banco, ao Governo ou às sanções internacionais, mas garante que as relações com Portugal são neste momento "cordiais", sublinhando que as tensões do passado - como o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente interino por Portugal - estão ultrapassadas.

Há pouco mais de 10 anos o ministro dos Negócios Estrangeiros referia-se à Venezuela como um país amigo. Entretanto, houve o reconhecimento de Juan Guaidó, como presidente interino, e até agora, tanto quanto sei, a diplomacia portuguesa não reconheceu publicamente a vitória do presidente Nicolás Maduro. Como descreve as relações entre Portugal e a Venezuela neste momento?

A Venezuela e Portugal têm relações cordiais baseadas no respeito mútuo. A diplomacia bolivariana de paz baseia-se sempre nisso, no respeito pela soberania e à autodeterminação dos povos. Recordemos que a Venezuela e Portugal têm uma relação há mais de 100 anos, com presença em Lisboa e no Funchal.

Temos um consulado-geral no Funchal e aqui em Lisboa também e há uma população portuguesa importante a residir na Venezuela, uma população de mais de meio milhão de habitantes que se tornaram sua, a pátria de Bolívar, e que estão muito bem integrados. São parte do aparelho produtivo da Venezuela, são luso-descendentes que vivem na Venezuela com muita tranquilidade e que estão realmente muito bem integrados.

Ou seja, por estas questões que aconteceram, não há um problema entre Portugal e a Venezuela neste momento. É isso que me tenta dizer?

Sim, as relações são cordiais. É certo que em 2019 houve essa questão com o Guaidó, que se proclamou ilegalmente presidente da Venezuela e o primeiro país que o reconheceu foi Portugal, mas esse é um capítulo que ficou para trás. Agora, há outros assuntos que nos levam a considerar que estão a reconhecer o atual presidente Nicolás Maduro como o nosso primeiro mandatário nacional. Por exemplo, a sentença judicial a favor da Venezuela, que mandou desbloquear os 1,5 mil milhões de dólares (1,3 mil milhões de euros) retidos no Novo Banco, que nos dá não só uma vitória jurídica mas também política, porque ela significa o reconhecimento da eleição livre e soberana pelo povo venezuelano do presidente Nicolás Maduro Moros.

Essa era outra das perguntas que lhe queria colocar, passou muito tempo para que a Venezuela tivesse uma decisão judicial favorável, para que pudesse ter o dinheiro que estava no Novo Banco. A Venezuela já tem esse dinheiro todo agora?

Não, este processo judicial está em curso, mas abriu um precedente para continuarmos a lutar em situações semelhantes. Quero aqui lembrar que a Venezuela tem dinheiro bloqueado em mais de 29 bancos internacionais e três instituições multilaterais. Estamos a falar de uma quantidade importante de dinheiro que pertence a todos os venezuelanos. Continuamos a luta contra todas essas agressões, porque além do bloqueio dos recursos - que nunca devia ter acontecido - não há, em nosso entender, um quadro legal que suporte uma ação como essa, em que alguém chega e de repente tira o património de todos os venezuelanos. Essas contas que existiam no Novo Banco e noutros bancos é dinheiro que pertence ao povo, é dinheiro para o bem-estar do povo, para se poder utilizar em tudo o que tem a ver com alimentos, com saúde, educação e outras coisas de que um país precisa para avançar.

Para que fique claro, esse dinheiro não regressou à Venezuela por culpa do Novo Banco, por culpa do Governo Português?

Continua a ser um processo judicial que ainda está em curso. Este é um tema sobre o qual os advogados têm um conhecimento mais profundo.

Nicolás Maduro foi eleito com 51% dos votos, parte da oposição rejeitou os resultados - algo que já aconteceu no passado. Este ano, parte da oposição promoveu também um boicote às eleições regionais e parlamentares. A Venezuela é neste momento um país dividido?

A democracia venezuelana é uma democracia muito vibrante e dinâmica, sempre foi assim. Sempre se estimulou na Venezuela a participação, a nossa democracia é participativa. Em 26 anos tivemos 32 atos eleitorais em que o povo exerceu o direito de voto em presidenciais, municipais, legislativas, entre outras. A juventude está a mobilizar-se agora para as eleições municipais que se aproximam - a 27 de Julho - mas há um sector da extrema-direita com uma agenda fascista bastante pronunciada, que quando estes actos eleitorais se aproximam articula planos violentos e desestabilizadores para o país. Já pudemos ver isso no 28 de Julho de 2024, a extrema-direita liderada por María Corina Machado, Leopoldo López e Juan Pablo Guanipa mobilizaram uns comanditos (grupos organizados) para executarem todas aquelas palestras violentas que afetaram instituições de saúde, universidades, estações de metro, escolas e tudo o mais. Atualmente, há um sector da oposição venezuelana que se demarca completamente dessas atitudes violentas e que estimula o voto democrático. Isto aconteceu agora a 25 de Maio, com as eleições para governadores, em que as forças chavistas ganharam 23 estados em 24, e em que se elegeram - se não me engano - 252 deputados chavistas de 280 lugares, os restantes foram da oposição. Há, de facto, uma oposição que apela ao voto. Se estamos divididos? Claro que há facções como em todos os países, mas a Venezuela, as autoridades venezuelanas, o próprio povo não podem permitir que a extrema-direita se apodere novamente das nossas cidades e dos nossos espaços, porque tem sido muito difícil para nós, enquanto venezuelanos, recuperar tudo o que temos conseguido recuperar. Não é noticiado na televisão, mas já vimos isso: eles são violentos, queimam gente viva, retêm veículos no metro de Caracas - que foi uma frota que criámos através do nosso programa de recuperação económica. Nós não podemos permitir isso, eles sozinhos foram fazendo o seu caminho, garantiram o seu exílio desejado nos Estados Unidos da América, mas nós sempre apelámos ao diálogo, sempre. O Presidente Nicolás Maduro, se nos ensinou alguma coisa, foi a falar, a conversar abertamente, com honestidade e com tempo, temos de respeitar e fazer respeitar a nossa soberania, não podemos permitir que venha alguém pôr-nos os pés em cima.

Mas como olha para as declarações dos presidentes do Brasil e da Colômbia? No passado eram próximos de Chávez e do governo venezuelano, mas nestas eleições tiveram uma posição um pouco distinta.

Eu acho que todos têm de lidar com as suas debilidades. Nenhum país é perfeito. A Venezuela continua aberta ao diálogo com qualquer país da região.

Atualmente, temos muitos acordos com o Brasil e a Colômbia. As economias colombiana e venezuelana, com a abertura da fronteira, produziram resultados significativos. No entanto, da minha posição, posso dizer que os líderes destes países deveriam primeiro olhar para as debilidades da Colômbia e do Brasil, neste caso, antes de fazer críticas diretas. Porque, bom, o povo venezuelano pronunciou-se, certo? Foram 52% dos votos a favor do presidente Nicolás Maduro Moros e essa é uma realidade comprovada.

Segundo a Agência da ONU para os refugiados, no ano passado havia 6 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos em todo o mundo. O que pretende o Governo Venezuelano fazer para que estas pessoas regressem? Que papel tiveram as sanções nesta situação?

Nós desde 2018, já com o presidente Nicolás Maduro Moros, temos um programa chamado Plan vuelta a la pátria (Plano regressar à pátria). Basicamente é um programa em que tratamos de toda a logística para que os venezuelanos que voluntariamente queiram regressar ao país o possam fazer. As nossas estatísticas dizem que 1 milhão e 300 mil venezuelanos voltaram desde 2018, outra estatística diz que neste ano de 2025 voltaram mais de 1400 venezuelanos. E porque é que aconteceu esta migração em massa? Bom, basicamente por causa das medidas coercivas unilaterais que nos foram impostas, principalmente pelas questões económicas, mas também por causa da propaganda de extrema-direita que vendeu aos venezuelanos a ideia de que fossem para o Perú ou Equador ia ser maravilhoso. Em todo o caso, atualmente estamos a enfrentar uma crise migratória mundial que é bastante delicada em todo o lado. A Venezuela, neste momento, está a ter um combate muito forte para resgatar 252 venezuelanos, que estão sequestrados num centro de confinamento terrorista em El Salvador e que foram para ali enviados pelo governo norte-americano. Não se respeitou a lei no caso destes venezuelanos.

Já falaremos de Trump, mas quantas pessoas venezuelanas, a viver em Portugal, tentaram regressar à Venezuela depois da criação deste programa?

Nenhuma. Como sabe, eu fui responsável por liderar o consulado venezuelano em Lisboa, que serve toda a região de Portugal continental. Quando a pandemia começou, implementámos alguns voos coordenados com a TAP, especialmente para trazer alguns portugueses de volta para cá. Os venezuelanos que saíram eram aqueles que estavam aqui de férias. Recordo que a população de descendentes de portugueses que vive na Venezuela é maioritariamente da ilha da Madeira, mas, mais uma vez, estão muito bem integrados, têm os seus negócios rentáveis, e graças a Deus estão na Venezuela e simplesmente vêm e vão. Não houve qualquer intenção, apesar de termos dado essa hipótese, de pessoas a quererem regressar. No entanto, as medidas coercivas unilaterais que causaram grandes prejuízos à população venezuelana incentivaram, em algum momento, os descendentes de portugueses, especialmente aqueles com problemas de saúde, a virem a Portugal para tratamento. Isso não é segredo. A Venezuela, em muitas ocasiões, fez o pedido humanitário para desbloquear estes recursos, por exemplo, para comprar vacinas, e o direito foi-lhe negado.

Falando um pouco de Trump e das políticas norte-americanas. Estamos num mundo muito dividido, entre o sul global e o ocidente. Quais vão ser as prioridades das relações diplomáticas da Venezuela e que desafio coloca esta política de Donald Trump de deportações e tarifas?

A Venezuela está a sofrer as consequências das medidas coercivas unilaterais desde 2015, como o famoso decreto Obama. Desde então, fomos sendo submetidos, atacados e fragilizados com 1039 medidas coercivas unilaterais, que ainda se mantêm. O presidente Nicolás Maduro esteve sempre disponível para conversar e para se aproximar de Washington de uma forma clara, sincera e respeitosa de acordo com os princípios da Carta das Nações Unidas e, acima de tudo, respeitando a soberania do povo venezuelano. O que poderá acontecer no futuro? Nós continuamos a fazer todos os esforços para a ajudar a população venezuelana, que está a ser fortemente criminalizada, sem qualquer tipo de justificação por parte dos Estados Unidos.

Hoje a América Latina mudou, se a compararmos com a de há mais de 10 anos. Hoje há Javier Milei...acredita que na região continua a haver dois modelos distintos de políticas não só económicas mas também sociais?

Sim, há dois modelos, acho que isso é mais do que claro. Nós apoiamos as política sociais para o bem-estar do povo. Essa é a nossa prioridade, até mesmo quando se apresenta o orçamento anual na Assembleia Nacional, falamos sempre em reforçar todas as políticas públicas em benefício do povo e estamos a conseguir isso, estamos a conseguir recuperar a nossa indústria petrolífera, que é o nosso principal sector e aquele que foi mais atacado. Quando começaram as medidas coercivas unilaterais o PIB reduziu-se em 87%, de 30 mil milhões de dólares começaram a entrar apenas 743 mil dólares, isso tem um impacto directo nas nossas políticas e na nossa ação. E sim, quando vemos o modelo da Argentina não se compara com os incentivos do governo bolivariano, não me compete falar disso aqui, mas sim temos modelos completamente diferentes.

Mas é uma desvantagem para a Venezuela que dependa tanto do petróleo? É certo que houve recentemente um crescimento do PIB, sinais positivos da economia, mas ainda assim com uma inflação muito alta. Isso deve-se à dependência do petróleo?

Não. As medidas coercivas unilaterais começaram em 2015 com o decreto Obama, como referi, e em 2018 o presidente Nicolás Maduro apresentou um plano de recuperação económica, que contemplava não só a indústria petrolífera mas também a atração de investimento estrangeiro e a produção interna - que tem melhorado muito. Na Venezuela, atualmente, produzimos 96% dos alimentos que consumimos...e quanto ao investimento estrangeiro também temos tido resultados. Tivemos 16 trimestres de crescimento constante, de facto é o mais elevado de toda a região sul americana, o PIB venezuelano cresceu 8,32% no ano passado, estamos a trabalhar na exportação de outros produtos - não só do petróleo - e estamos a tentar estimular o turismo, que as pessoas visitem a Venezuela e possam ver a realidade e a recuperação económica que existe, e que em comparação com outros países da região é bastante notória. O nível de inflação é constante desde há mais ou menos 3 ou 4 anos, ele estabilizou.

Pelo que me diz vão fazer uma grande aposta no turismo.

Sim, a nossa Ministra do Turismo, Letícia Goméz, que é uma pessoa muito dinâmica, está a trabalhar todo um programa de atração com países da União Europeia e com os nossos aliados comerciais e políticos como a China, a Turquia, a Rússia, o Irão e as Ilhas das Caraíbas. Estamos a trabalhar com muita força para estimularmos o turismo nacional e internacional, a Venezuela tem tudo, tem muito para mostrar e, apesar das medidas coercivas unilaterais que realmente têm afetado muito aquilo que queremos fazer, temos conseguido resultados importantes.

Recentemente houve um ataque ao Consulado Geral em Lisboa, mas também noutras infraestruturas diplomáticas venezuelanas noutros países. As autoridades portuguesas iniciaram uma investigação, há desenvolvimentos?

O governo bolivariano aguarda ainda uma resposta da Polícia Judiciária, responsável por esta investigação. Agradecemos a pronta resposta no dia em que sofremos o ataque, em janeiro deste ano. Houve também outras missões diplomáticas que foram atacadas na União Europeia, em particular: Alemanha, Noruega, Espanha e Portugal. E eles responderam com bastante rapidez, o que, claro, não levou a uma tragédia pior. Agora esperamos informações das autoridades sobre a situação, em algum momento. Mas agora já passou, e a verdade é que não nos encontramos novamente em perigo iminente.
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