Saúde: interesse público e fins lucrativos

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira. Edição: Nuno Patrício, Pedro Pina
A chanceler alemã Angela Merkel, assistindo a uma intervenção cirúrgica num hospital militar Fabian Bimmer, Reuters

Médicos e enfermeiros queixam-se da degradação das condições de trabalho num sistema de saúde que pensa mais nos lucros dos investidores e menos no bem estar dos pacientes. E a fuga dos poderes públicos às suas responsabilidades agrava ainda os efeitos da mercantilização da rede hospitalar.

Thomas Pottgießer é desde 1990 enfermeiro na clínica do grupo Vivantes em Urban, Berlim, e entretanto membro também da Comissão de Trabalhadores desse estabelecimento. A sua experiência de mais de duas décadas e meia no serviço de gastroenterologia permite-lhe comparar a evolução do pessoal aí existente com a evolução do número de pacientes. A conclusão é óbvia: para cada vez mais pacientes, há um número de médicos e enfermeiros no melhor dos casos estagnado.

Turnos com cinco, seis ou sete pacientes passam a ter o dobro ou o triplo, mas são atendidos pelo mesmo número de trabalhadores.




Marlen Souschek, estagiária de enfermagem na especialidade de pediatria, no hospital da Cruz Vermelha em Charlottenburg, Berlim, também tem passado pela experiência de se encontrar com um número crescente de pacientes, principalmente durante os turnos da noite, em que há muito para fazer. Nesses turnos, muitas vezes se faz sentir a falta de colegas.

A política de não aumentar os quadros, e por vezes mesmo de não substituir o pessoal saído para a reforma. não podia deixar de originar uma crise. Quando finalmente surgiu a crise, os legisladores tentaram responder estabelecendo mínimos de pessoal obrigatórios.

Opinion makers ligados aos seguros de saúde vieram, num primeiro momento, propor ideias como a de reduzir o número de hospitais, para haver mais pessoal em cada hospital - abstraindo da outra consequência óbvia, de que nesse caso certamente passaria a haver mais pacientes em cada hospital.

Ringo Schuster, activista contra os despejos e a gentrificação da cidade, refere o encerramento de um hospital em Kreuzberg, um bairro popular de Berlim. Mas trata-se de um encerramento que permitiria realizar alguns cortes na despesa pública e de qualquer modo nada teria a ver com um restabelecimento dos mínimos de pessoal exigíveis no sistema de Saúde. 

Quando descobriram a existência da crise causada pela escassez de pessoal, as administrações hospitalares tiveram de procurar outras soluções. E nessa altura voltaram a fazer um esforço de recrutamento, que se traduz na melhoria conjuntural das condições oferecidas, como observa Pottgießer.



A enfermeira portuguesa Adriana Soares começou por trabalhar em condições muito desfavoráveis num lar de idosos próximo de Berlim. Depois, já no contexto da crise causada pela escassez de pessoal, foi contratada para um hospital do mesmo grupo Vivantes, que lhe ofereceu condições mais satisfatórias.

Também Adriana Soares regista o mesmo fenómeno genérico, do rácio muito insuficiente entre pessoal e pacientes, e regista, além disso, o relativo fracasso dos esforços para resolver o problema. Na verdade, faria falta, a montante, uma formação mais sólida do pessoal de enfermagem.

As administrações hospitalares recrutam agora esse pessoal, de forma algo improvisada, para fazer face a uma situação de emergência e crise. Mas têm de recrutar o pessoal disponível, depois de vários anos de desinvestimento numa formação profissional qualificada.


Robert Bortfeldt, médico num hospital de Berlim, constata efeitos da política de redução de pessoal semelhantes aos que Pottgießer observara também: nas unidades de terapia intensiva, essa política traduz-se por haver cada vez mais camas em cada unidade, mas atendidas por um número de médicos que não cresce.

Thomas Pottgießer observa entretanto duas consequências da preocupação economicista das administrações hospitalares, aparentemente contraditórias mas na realidade convergindo ambas para agravarem a situação dos pacientes. Por um lado, a escassez de pessoal torna mais difícil levar a cabo procedimentos de uma rotina elementar e, em condições normais, obrigatória.

Por outro lado, há a tentação de levar a cabo procedimentos dispensáveis ou mesmo contraindicados, quando estes são especialmente lucrativos. Numa palavra, dá-se a combinação entre o que Pottgießer denomina como subtratamento e sobretratamento dos pacientes.

O conceito de sobretatamento, que Pottgießer explica, não é aliás uma invenção sua. Esse conceito vem constituindo tema de acalorados debates na grande imprensa e em revistas médicas especializadas. Numa destas revistas, Mathias Thöns, médico especialista em cuidados paliativos, afirma mesmo que muitos procedimentos, realizados por serem caros, só vêm agravar o sofrimento de pacientes em fase terminal. Segundo o mesmo Thöns, encontramo-nos aqui, muitas vezes, no limiar de comportamentos criminosos.

Robert Bortfeldt concretiza a constatação geral sobre a motivação economicista, relacionando-a com uma experiência concreta nas intervenções cirúrgicas. Por serem as que recebem financiamentos mais importantes dos seguros de saúde, essas intervenções são realizadas com a preocupação de que as salas de operações tenham uma utilização sem falhas nem desperdícios, como num tapete rolante.

Além desta, outras tendências conexas têm vindo a suscitar controvérsia na opinião pública. Uma delas é a dos procedimentos relacionados com a anestesia geral durante as intervenções cirúrgicas.

Para retirar os pacientes da sala de operações, é indispensável que estes tenham despertado da anestesia. A tendência é portanto a de reduzir ao mínimo o tempo de inconsciência do paciente. Milhares de casos de pacientes que começam a despertar ainda durante a intervenção têm causado preocupação e constituído objecto de atenção da imprensa.

A estrutura do sistema de saúde alemão, tal como a descreve Thomas Pottgießer, assenta num duplo financiamento: dos Governos dos Länder para os investimentos (instalações e equipamento); e dos seguros de saúde para os gastos correntes (nomeadamente tratamentos dos pacientes).

Acontece que a política de cortes orçamentais coloca os Governos em incumprimento e leva as administrações hospitalares a compensarem o buraco financeiro com dinheiros dos seguros de saúde - contra o que a lei estabelece.

A origem das reduções de pessoal já referidas explica-se em parte como resposta das administrações hospitalares ao incumprimento dos Governos.

Os custos com o trabalho têm sido o alvo dos cortes mais sistemáticos nos últimos 15 anos, apesar dos avanços e recuos determinados pela crise de escassez de pessoal. Desse modo, as administrações tentam poupar para os investimentos (ou para distribuir como dividendos) dinheiro que na realidade deveria ter outro destino.

Robert Bortfeldt quantifica o incumprimento dos Governos regionais: eles estariam, actualmente, a financiar menos de metade dos investimentos que deviam financiar na totalidade. E a resposta das administrações hospitalares traduz-se, para além da redução de pessoal, em poupanças forçadas nos custos dos tratamentos.

Uma outra resposta consiste na poupança com os custos do trabalho, mediante a sua precarização. Sascha Kraft, membro da Comissão de Trabalhadores da Charité Facility Management, exemplifica essa política de precarização com a realização de actividades permanentes por trabalhadores temporários.

Pottgießer considera o actual sistema de saúde demasiado impregnado pela lógica economicista, e sofrendo por isso de uma degradação do tratamento dos pacientes e de uma paralela degradação das condições de trabalho do pessoal.

Para Bortfeldt, os flagelos assim descritos não podem ser imputados a esta ou àquela administração hospitalar e são inevitáveis enquanto "a regra do jogo continuar a ser a economia de mercado".

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