Sociedade civil de Myanmar exige à ONU que deixe de legitimar "regime" dos generais

por RTP
Militar guarda prisão em Rangoon, Myanmar. A sociedade civil exige à ONU que apoie o Governo de Unidade Nacional Reuters

As agências, fundos e outras organizações ligadas às Nações Unidas têm de deixar de lidar com os generais, que assumiram o poder em Myanmar num golpe em 2021, como se estes fossem os legítimos representantes populares, apelam mais de 600 grupos civis do país.

Em carta aberta, condenam "nos termos mais severos" a recorrente apresentação de credenciais e a assinatura de acordos com a junta militar, por parte de diversas agências da ONU. A atual missiva lembra que igual pedido já foi feito em dezembro, sem surtir efeitos. Os subscritores alegam que tais práticas reconhecem implicitamente a legitimidade dos golpistas.

"Apelamos-lhe, a si e a todas as entidades da ONU, para cessarem de imediato todas as formas de cooperação e de compromisso que legitimam a junta assassina ilegal", refere a carta enviada ao secretário-geral da ONU, António Guterres, e assinada por 638 organizações da sociedade civil de Myanmar, antiga Birmânia.

"Pedimos com urgência que intervenha em favor de uma presença da ONU em Myanmar, coordenada e respeitadora de princípios", acrescentam.
Militares só controlam 17% do país
Sob a liderança do general Min Aung Hlaing, a junta militar assumiu-se como poder birmanês em fevereiro de 2021, depois de prender a presidente Aung San Suu Kyi, eleita em novembro de 2020.

O golpe de Estado levou a protestos em massa a nível nacional reprimidos de forma brutal pelas forças militares e policiais. Mais de 2.300 pessoas foram assassinadas em Myanmar desde que os generais afastaram Aung San Suu Kyi, de acordo com a Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos, um grupo civil que acompanha o balanço das vítimas da repressão.

Em reação, os partidos e líderes afastados agruparam-se num Governo de Unidade Nacional, NGU, que formou a Força de Defesa do Povo para resistir e lutar pelo regresso à democracia, encorajando os civis a pegar em armas.

No início deste mês, um relatório do Conselho Especial de Consultoria para Myanmar, que inclui antigos relatores da ONU, revelou que a junta militar apenas controla efetivamente 17 por cento do país, enquanto o NGU domina mais de 50 por cento do território.

"O mundo tem de acordar para o facto de que se está a formar uma nova realidade em Myanmar", afirmou Yanghee Lee, coordenador do relatório. "O Governo de Unidade Nacional não é um governo-sombra nem um governo no exílio. Representa a revolução popular e a resistência à junta militar, e as suas forças combinadas controlam a maior parte do país".

O NGU tem procurado apoios na comunidade internacional para contestar a junta militar, apelando ao reconhecimento da sua própria legitimidade enquanto representante de Myanmar, sobretudo na ONU, onde Kyaw Moe Tun, o embaixador nomeado por Aung San Suu Kyi, foi reconduzido no posto por decisão da Assembleia Geral.ONU debaixo de fogo
Na carta enviada agora a Guterres, são criticadas as ações de diversas agências, incluindo da OCHA (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários), da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e da OIM (Organização Internacional para as Migrações).

Todas assinaram acordos com a junta militar e apresentaram em agosto e em setembro de 2022 as respetivas credenciais aos representantes militares, criticam os subscritores das organizações civis de Myanmar.

A missiva sublinha que "as cerimónias públicas, que incluíram fotógrafos, foram usadas como propaganda pela junta militar nas suas tentativas constantes de afirmar a sua legitimidade".

A ONU, assim como a ASEAN, têm por isso de mudar de estratégia e de reconhecer o Governo de Unidade Nacional, em vez de se colocarem "claramente, ao lado" dos militares.

"Isto viola os princípios da democracia, dos direitos humanos e os princípios humanitários da imparcialidade, da neutralidade, da independência e de não prejudicar, previstos no Protocolo Operacional Conjunto da ONU", lembra a missiva.

"As entidades e agências, fundos e programas da ONU em Myanmar deveriam ser guiadas por esta decisão e lidar publicamente com o NGU e não com a junta militar", exigem as organizações civis birmanesas.
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