Sombras do Kremlin no despedimento do diretor do FBI

por Paulo Alexandre Amaral - RTP
Em causa estará a forma como o chefe do FBI lidou com o caso dos emails de Hillary Clinton Jonathan Ernst - Reuters

O Presidente dos Estados Unidos despediu o diretor do FBI alegando que James Comey não mais é “capaz de liderar com eficácia o Bureau”. Donald Trump segue as recomendações do gabinete do Procurador-Geral Jeff Sessions, uma argumentação que assenta em particular na forma como o FBI tratou o caso do servidor privado de Hillary Clinton enquanto secretária de Estado. Mas os democratas temem que esta seja uma manobra de diversão para afastar Comey da investigação aos alegados contactos da campanha de Trump com o Kremlin. Coincidentemente ou não, o despedimento surgiu na véspera da visita à Casa Branca de Sergei Lavrov, o chefe da diplomacia russa.

A notícia caiu como uma bomba em Washington. Justificando o despedimento de James Comey com a necessidade de encontrar uma “liderança que restaure a confiança no FBI”, o Presidente Trump não chegou a explicar as razões da decisão. Mas agiu segundo pressupostos de gravidade máxima, ao pedir-lhe que abandone já o cargo.
James Comey foi nomeado por Barack Obama em 2013 para um mandato de dez anos à frente do FBI.


De acordo com o anúncio do porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, o presidente aceitou a recomendação do gabinete do procurador-geral Jeff Sessions.

Em causa estará a forma como o chefe do FBI lidou com o caso dos emails de Hillary Clinton. O comunicado de Trump assinala que o “FBI é uma das mais queridas e respeitadas instituições da nossa nação (…) O dia de hoje marca um novo começo para a joia da coroa para a aplicação da lei”.

A demissão de Comey acontece dois meses depois de o diretor do FBI ter posto de parte a possibilidade de a Trump Tower ter sido colocada sob escuta por Barack Obama, uma alegação que vinha sendo sustentada por Donald Trump. Mais um episódio menor colocado no quadro geral da grande especulação que não tem fim à vista desde que o novo Presidente chegou à Casa Branca: houve ou não contactos entre os elementos da campanha de Trump com o Kremlin e, sendo verdade, que papel teve Moscovo na eleição do 45.º presidente dos Estados Unidos.

O FBI é ainda o responsável pela investigação das alegadas ligações entre a campanha de Trump e o Kremlin, facto que não será alterado com a saída de James Comey, mas a suspeita de tentativa de condicionamento da investigação está agora, mais do que nunca, em cima da mesa.

Aparentemente, a razão mais próxima para a demissão de Comey – os emails de Clinton e os perigos que o servidor privado representou para a segurança nacional – é vista pelos democratas como a razão da derrota eleitoral da antiga secretária de Estado a 8 de novembro.

No entanto, é esse o ponto sublinhado pelo vice-procurador-geral Rod Rosenstein no memorando entregue a Jeff Sessions: “Eu não posso defender a forma como o diretor [James Comey] está a levar a conduzir o inquérito no processo dos emails da secretária Clinton e não compreendo a sua recusa em aceitar a opinião quase generalizada de que ele estava errado”.

Depois de dar por encerrada a investigação em inícios de junho, Comey decidia em outubro, a escassas semanas da eleição presidencial, reabrir o processo de investigação a Clinton, decisão que a campanha democrata vê como um favorecimento de Donald Trump.

Apesar de ser este o fio de prumo apontado na demissão do chefe do FBI, é outro o cenário que vai na cabeça de muita gente em Washington: é apenas mais uma manobra para inviabilizar o apuramento dessas eventuais ligações entre os assessores da campanha de Trump e o Kremlin.

Sergei Lavrov, o ministro russo dos negócios estrangeiros, encontrou-se durante a manhã com o seu homólogo americano, Rex Tillerson, e o assunto foi-lhe atirado pelos jornalistas.



Questionado sobre a demissão de Comey, se teria alguma influência no encontro com Trump, Lavrov respondeu: "Ele foi despedido? Estão a brincar".
Watergate revisitado

Alguns democratas já repudiaram a decisão de Donald Trump, com alguns deles a evocar o “massacre de sábado à noite” (1973), quando o Presidente Richard Nixon demitiu um procurador independente que estava a investigar o escândalo Watergate, que visava uma ação de espionagem de Nixon na sede de campanha dos democratas e que mais tarde viria a ditar o seu afastamento da Presidência.

Mas até a conta de Twitter da Biblioteca Richard Nixon fez notar que nem o líder derrubado por uma investigação jornalística foi ao ponto de demitir um diretor do FBI.


“A ação do Presidente Trump oblitera qualquer possibilidade de uma investigação independente às iniciativas russas para influenciar a nossa eleição e coloca a nação à beira de uma crise constitucional”, denunciou o democrata John Conyers, membro do Comité Judicial da Casa dos Representantes.

Na mesma linha, Chuk Schumer, o chefe dos democratas no Senado, apontou o erro grave em que está a incorrer a Administração e pediu já a nomeação de um magistrado independente para liderar a investigação às ligações russas.
As rédeas do poder

Numa altura em que se procura apurar, mais do que a prova de que houve contacto entre elementos da campanha de Donald Trump e o Kremlin – são inegáveis os vários episódios de contacto entre as duas equipas – os moldes em que esses contactos ocorreram, e de que forma poderão ter influenciado o decorrer das Presidenciais americanas de 2016, continuam a ser retiradas do tabuleiro peças fulcrais para a compreensão do processo que levou à eleição do milionário.

James Comey, Sally Yates, Michael Flynn são nomes com um factor comum: a interferência com os planos da Administração e o rumo que o Presidente pretende dar à América. Todos acabaram por abandonar a equipa da Administração Trump.

Jeff Sessions, pelo contrário, foi energicamente defendido por Donald Trump aquando da nomeação para a Procuradoria, apesar da revelação dos seus contactos com o embaixador russo Sergei Kislyak e de na audição para o lugar de procurador-geral ter mentido à vista de toda a gente, negando esses contactos durante a campanha para as presidenciais do ano passado. Acusado pelos democratas de ter mentido sob juramento, foi-lhe exigido que resignasse ao lugar, mas isso não aconteceu.

A mesma sorte não teve Sally Yates, que ocupava o lugar interinamente, mas que recusou apoiar a ordem de Trump que impedia a entrada nos Estados unidos de imigrantes oriundos de certos países muçulmanos. Yates revelou ainda semana ter também advertido a Casa Branca para a posição fragilizada de Michael Flynn face aos russos: o assessor para segurança Nacional estaria comprometido e poderia ser manipulado, eventualmente chantageado, pelo Kremlin, foi comunicado à Administração. Mas Trump não deu relevância à informação e manteve o tenente-general da sua equipa até que as mentiras deste relativamente a contactos com elementos russos tornaram insustentável a sua continuidade em funções oficiais.

Curiosamente, durante a campanha, Flynn defendera a prisão de Hillary Clinton, que acusava de ter comprometido a segurança nacional com o uso do seu servidor privado. Precisamente a acusação que ditou a sua saída: Michael Flynn estava a comprometer a segurança nacional.


Donald Trump tem enfrentado nestes 100 dias de Presidência um monstro criado por si próprio, uma espécie de inimigo interno, o inimigo da América: foi assim com os juízes que anularam a ordem que bania imigrantes e refugiados; foi assim com os governadores que se negaram a integrar essa ordem nos seus Estados; foi assim com os próprios republicanos que recusaram a sua ideia de ter votações de maioria simples (50+1) no Senado para mais facilmente aprovar as suas propostas legislativas.

Talvez seja essa a razão por que Trump gosta de ter à mão assessores como Ivanka Trump, a própria filha, Jared Kushner, o genro a quem entregou o dossier da paz no israelo-palestiniana mas a quem não se conhece uma única linha de pensamento político, ou Kellyanne Conway, a hábil criadora do conceito de factos alternativos, uma narrativa conformada às normativas trumpianas, na qual o jornalismo é falso e mente sempre que atinge o Presidente.
Tópicos
pub