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Série de televisão russa apresenta Trotsky como "um canibal e um tirano"

por RTP
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Duas lendas casam-se numa só série televisiva, a emitir na Rússia a partir do início de Novembro: a lenda dos comunistas que comiam crianças e a lenda dos judeus que raptavam crianças cristãs para usarem o sangue destas em rituais secretos. Trotsky é a figura central da série.

A série deverá ser emitida na televisão oficial Perviy Kanal (Canal 1) por ocasião do centenário da Revolução de Outubro, no início de Novembro. A iniciativa da sua produção partiu do director daquela estação pública, Konstantin Ernst, conhecido como homem de mão do presidente Vladimir Putin e ocasionalmente designado como seu "mestre de cerimónias".

Um dos realizadores, Alexander Kott, declarou à imprensa que a versão apresentada é inovadora por ter descoberto que Trotsky, mais do que Lenine, foi o verdadeiro dirigente dessa revolução.

Alguma imprensa israelita vem prestando especial atenção à série televisiva e às declarações de Kott, não tanto pela dúvida sobre a veracidade da versão apresentada, mas sobretudo pela aparência de existirem, por trás dela, motivações antisemitas.

Assim, o jornal The Times of Israel cita Kott a afirmar que "Trotsky escrevia a música e Lenin cantava. Trotsky fez a revolução acontecer; Lenine apenas a dirigiu". E acrescenta: "Ele [Trotsky] assinava todas as ordens. Eu próprio encontrei uma porção delas".

Concretamente, Trotsky teria sido o responsável directo pela ordem de execução do czar Nicolau II e de toda a sua família em Ekaterinnenburg. Por isso, afirma, "ele era um canibal e um tirano. Ele está cheio de sangue até ao pescoço. Por ordem sua, foram queimadas aldeias inteiras". As imagens emprestam força a esta versão da história, sem se embaraçarem com os clichés mais primitivos (vd. foto).

Kott manifesta a expectativa de "que a visão do público sobre Trotsky mude quando a série for emitida, porque hoje ninguém se lembra dele. Toda a gente conhece Lenine, mas toda a gente esqueceu Trotsky".

O co-autor da série explica o esquecimento da figura de Trotsky pelo facto de o seu papel de liderança ter sido dissimulado, devido à origem judaica que o tornaria inaceitável para as massas. Ainda segundo Kott, "o povo não teria seguido um líder judeu. Para os trabalhadores das fábricas, ele era um estranho. Por isso, ele fazia tudo e depois punha-se de lado".

Questionado sobre os estereótipos antisemitas evidentes na série, Kott afirma que tentou "ser objectivo". E sustenta que "já não existe antisemitismo na Rússia. Metade dos judeus emigrou e o antisemitismo que existia nos tempos soviéticos já não existe agora".
Série fortemente criticada
Mas estas declarações de intenção não têm impedido a série de ser, desde já, fortemente contestada. Uma das vozes críticas é a do historiador Gennady Estraikh, especialista de História da comunidade judaica russa, a leccionar na Universidade de Nova Iorque. Ainda segundo citação de The Times of Israel, Estraikh classifica esta versão como um "disparate pegado".

Para Estraikh, não só a série "não corresponde a quaisquer factos históricos", como, além disso, "cheira a antisemitismo, a alegação de que foram os judeus os responsáveis pela revolução e não tanto os russos".

Outra voz crítica é a do especialista em Estudos Eurasiáticos na Universidade de Harvard, Joshua Rubenstein. Este diz-se "intrigado pela ideia dos produtores, de porem Trotsky no centro da narrativa e não Lenine. Pergunto-me quais terão sido as intenções deles, ao colocarem explicitamente uma figura judaica como Trotsky no centro da história".

Especificamente sobre a alegação de Trotsky ter ordenado o regicídio, Rubenstein contesta: "Se eles afirmam que Trotsky esteve por trás da execução do czar, isso simplesmente não é verdade. Lenine e Sverdlov [ordenaram] a execução do czar. Se eles afirmam que foi Trotsky, então realmente pergunto-me que motivos têm, porque este é um ponto muito sensível".

Rubenstein recorda que, como chefe do Exército Vermelho, Trostky se encontrava quase sempre na frente de combate e provavelmente nem estaria em Moscovo quando foi tomada a decisão do regicídio. Pelo contrário, "Trotsky sempre quis levar o czar a julgamento e ser, ele próprio, o acusador. O czar é uma figura venerada pela Igreja Ortodoxa Russa. Dizer que um judeu estava por trás da sua execução é uma acusação muito incendiária".

E a acusação é também incendiária, segundo Rubenstein, porque Trotsky, embora desde jovem desligado da comunidade judaica, protegeu os judeus contra os pogroms: "Acreditamos que uns 150.000 judeus foram mortos e que foi o Exército Vermelho que travou [essas matanças]. Trotsky opunha-se totalmente a quaisquer ataques físicos contra os judeus".
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