Taiwan, o país que não existe para Portugal

Os portugueses que residem em Taiwan são reféns da burocracia nacional porque Portugal não reconhece a ilha como país, os empresários têm de ser muito imaginativos para importar produtos, e assuntos banais do quotidiano, como casar ou registar os filhos no nosso país, são uma autêntica dor de cabeça.

O João Reis mudou-se em 2016 para Taipé, quando tinha 22 anos. Entretanto, casou com uma taiwanesa, tem dois filhos e, agora, quer registar as crianças como portuguesas, mas bateu num muro de burocracia e não consegue.

“Está a ser complicado registá-los porque nasceram em lado nenhum, porque não é China, mas também não existe Taiwan”, comenta com algum humor. Está consciente que vai ter de recorrer a advogados e já faz contas ao “dinheiro e dinheiro” que terá de gastar, mas não vê o processo com otimismo porque tem amigos que já tentaram o mesmo e não conseguiram porque “efetivamente, Taiwan não existe para Portugal”.

E, com uma gargalhada, realça o que ouve repetidamente das conservatórias quando explica que as crianças não nasceram na China, mas sim em Taiwan: “não existe, é inexistente”. E a risada de incredulidade continua quando lhe dizem que vai ter de registar, primeiro, o casamento para depois registar as crianças.

Esta reação é natural porque conhece bem a aventura dos amigos Nuno Azevedo e Ellen Lee, que sonhavam casar-se em agosto em Portugal. Mas também eles estão a enfrentar as dificuldades da ausência de relações diplomáticas entre os dois países.


As conservatórias não a deixam casar como sendo natural da República da China - Taiwan, só aceitam o processo se for natural da República Popular da China, algo impensável para a noiva. “A Ellen, como cidadã taiwanesa, não aceita casar com outra nacionalidade, ela casa com a nacionalidade dela, que é taiwanesa”, afirma Nuno Azevedo salientando que pensava que o processo seria fácil quando, afinal, se tornou “muito complicado porque não há ajuda em Taiwan”.

As dificuldades tornam-se extremas, igualmente, quando se fala de negócios.

Carlos Couto descobriu-as em 2012 depois de começar a importar vinhos portugueses em Taipé. E aumentaram após criar o Tuga, um restaurante cujo nome não deixa dúvidas e que é uma referência no mundo gastronómico da capital taiwanesa.

Pela evolução normal da atividade gastronómica, aos vinhos teve de somar produtos alimentares nacionais, mas descobrir uma solução para os obter foi um privilégio astuto de quem vive há mais de 40 anos em Macau.

Muitos talvez o conheçam pela profissão principal, a de arquiteto. Foi o criador do premiado pavilhão de Portugal na Exposição Mundial de 2010, em Xangai, responsável pela organização urbanística de Macau durante as décadas de 1980 e 1990, desenhou o autódromo de Taipé e, antes de abandonar Portugal, ajudou a reconstruir as ilhas Terceira e São Jorge após o terramoto de 1980.

Atualmente, é o maior (e praticamente único) importador de vinhos portugueses em Taiwan e introduziu a cerveja Super Bock no país, negócio que passou a um distribuidor de Hog Kong. Em 2015, criou o restaurante Tuga, onde se come “comida de tacho” confecionada pelo chef Nelson Santos. 

O empresário prefere falar numa “loja de vinhos encapotada”, explicando que para abrir uma garrafa, é preciso dar de comer pelo que essa foi a estratégia seguida para impor a marca Portugal e os respetivos vinhos de média e alta gama pois considera que é pelo topo que tem de se começar.

O resultado foi positivo uma vez que “os taiwaneses consomem muito”, vão ao local comer e comprar, sendo 95% da clientela local e regular. Como curiosidade da evolução do mercado e do consumo, até explica que, quando começou, só 20% dos vinhos consumidos eram brancos e, agora, já são cerca de 50%.

Mas chegar aqui foi um suplício devido à falta de relações diplomáticas entre os dois países e ao facto de ser o único a importar produtos portugueses. Assim, “a logística é um pesadelo” porque não há linhas estabelecidas, não tem ninguém com quem partilhar um contentor e não consegue obter licenças de importação diretamente para Taipé. A solução, foi fazê-lo via Macau.


Porém, a situação é muito complexa e, exemplifica que levar pão português para Taipé, demorou um ano. Mesmo assim, realça Carlos Couto, só conseguiu “umas amostras”, que tinham chegado uma semana antes desta reportagem. A encomenda incluía 61 produtos nacionais, mas só conseguiu receber 21 porque os restantes precisam de procedimentos que carecem de ajuda oficial das autoridades portuguesas.

Segundo explica, os produtos alimentares têm uma autorização de seis meses, mas se durante esse período não há nova importação, a permissão é cancelada e o processo tem de ser retomado, só que isso necessita de ser espoletado oficialmente entre governos.

“Como empresário, não me posso candidatar a trazer bacalhau da Lugrade ou Riberalves ou qualquer outro, tem de passar por portas oficiais e, como não há portas oficiais, é muito difícil para um empresário lidar com isto e também saber qual a porta que posso ter em Portugal para bater e me ajudar”, realça Carlos Couto. 

Como não há portas oficiais, por vezes, têm de se abrir portas travessas para ter as iguarias na mesa dos clientes, mas essas não as podemos revelar aqui.
Uma só China ou duas Chinas?
Toda esta complicação decorre do facto de Portugal não reconhecer a República da China (Taiwan) como país, apenas reconhece a República Popular da China, a China continental cuja capital é Pequim.

À RTP, o Ministério dos Negócios Estrangeiros referiu que Portugal se rege pela política “Uma só China”, como consignado no comunicado conjunto do Governo da República Popular da China e do Governo da República Portuguesa sobre o estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e Portugal, de 8 de fevereiro de 1979. Portanto, “as interações com Taiwan regem-se por esta política”.

É salientado, ainda, que existe em Lisboa um “Centro Económico e Cultural de Taipei em Portugal”, “registado como associação de direito privado, que não beneficia de privilégios diplomáticos”.

A ilha de Taiwan, a que os navegadores portugueses deram o nome de Formosa no século XVI, foi doada ao Japão em 1895 pela Dinastia Qing, que conquistou e dominou a China até 1911. A República da China foi fundada em 1912 e começou a exercer soberania sobre Taiwan em 1945, após a rendição dos japoneses na Segunda Guerra Mundial. Porém, o governo republicano mudou-se para Taiwan em 1949 na sequência da guerra civil com o Partido Comunista Chinês, tendo mantido o poder na ilha desde então, o que levou à existência paralela de duas Chinas.


Assim, Pequim nunca exerceu a soberania sobre Taiwan mas, internacionalmente, o estado democrático governado a partir de Taipé também nunca se impôs diplomaticamente. Só é reconhecido por 11 países, maioritariamente da América Latina e Caraíbas e o Vaticano. É um protetorado dos EUA, mas nem Washington avança com o reconhecimento oficial.

Todavia, como realça Ricardo Oliveira, investigador português em Política numa universidade de Taipé, na prática, “Taiwan existe de forma independente, a sua soberania não depende da República Popular da China. Aliás, a República Popular da China nunca governou Taiwan, mas não existe uma declaração de independência formal”. Por isso, considera que as constantes manobras militares ao largo da ilha são uma forma de lembrar às elites que não “devem seguir esse caminho”.

Apesar desta permanente tensão geopolítica, e falta de relações diplomáticas formais, Taiwan é uma das maiores 20 economias do mundo e lidera o mercado de semi-condutores. Por isso, a atividade económica com o resto do mundo é regular, inclusivamente com a União Europeia (UE), que é o quarto maior parceiro comercial de Taiwan. 

Em 2022, as importações da UE provenientes de Taiwan atingiram 49,2 mil milhões de euros em bens e 6,4 mil milhões de euros em serviços. E as exportações da UE para Taiwan ascenderam a 35,1 mil milhões de euros em bens e 6,9 mil milhões de euros em serviços.


Taiwan é membro da Organização Mundial do Comércio desde 2002 e, em dezembro de 2023, uma resolução do Parlamento Europeu solicitou “à Comissão e aos Estados-Membros que facilitem e incentivem os intercâmbios culturais e educativos, a fim de promover a colaboração científica e académica no contexto mais vasto da relação comercial e de investimento”. E “insta a Comissão a facilitar a participação de representantes da sociedade civil, de empresas e de organizações taiwanesas na cooperação comercial e económica”. Isto, apesar da UE “manter a sua posição a favor da política de «Uma só China»”.

“A situação é um bocadinho hipócrita” em Portugal e o país “está a perder oportunidades”, desabafa Paulo Rios, ex-deputado do PSD, que liderou o grupo informal de amizade Portugal-Taiwan, na Assembleia da República.

 Refere que há 16 embaixadas em Taipé, uma representação da União Europeia e muitos países a estreitar relações fortes com Taiwan, enquanto Portugal se mantém de fora. E lamenta andar há 15 anos a tentar que “Portugal tenha, ao menos, uma presença institucional, cultural em Taiwan”.

Paulo Rios defende que é preciso “ultrapassar algum constrangimento formal” devido ao “receio da China”, que fez diversos protestos depois das várias viagens que ele e outros parlamentares efetuaram a Taipé.

Carlos Couto é da mesma opinião, considerando que “somos mais papistas do que o papa” porque há “um bocado de receio a mais da reação” da China, quando os restantes países se estão a instalar ali com entidades que atuam na cultura e economia.

“Taiwan é uma realidade. Não podemos fugir dela”, remata o empresário sublinhando que se trata de uma das maiores economias mundiais e que há investimentos bilaterais que poderiam ser feitos e facilitados se houvesse uma ponte oficial.
Democracia no Mar da China
Paulo Rios realça, igualmente, a necessidade de Portugal estreitar relações porque, “no meio daquele mar da China”, com Taiwan há partilha de “valores que são os nossos” porque é uma democracia com eleições e partidos políticos como por cá.

Ricardo Oliveira reforça essa ideia: “Isto é um regime democrático e tenho a liberdade que está disponível em Portugal e nos países da Europa”.

Como investigador na área política, traça bem as diferenças do que vive em Taiwan, onde é livre de estudar e escrever o que quer dentro dos parâmetros científicos, ao contrário do que podia fazer na República Popular da China, onde residiu até à Covid, e onde teve de assinar um papel, logo que entrou para a universidade, declarando que “não podia pôr em causa a segurança do regime”. Taiwan “é um país mais livre e aberto ao mundo”, reforça.
Manobras militares ignoradas pela população
A pressão da China sobre Taiwan faz-se, regularmente, através de manobras militares ao largo da ilha como demonstração do poderio bélico.

Mas essa atividade é completamente desvalorizada pelos cidadãos normais sendo entendida, apenas, como uma mensagem para as elites taiwanesas e para o resto do mundo. As mais recentes manobras navais de simulação de isolamento da ilha foram nos dias 23 e 24 de maio, três dias apenas depois da tomada de posse do novo presidente de Taiwan, Lai Ching-te, que as autoridades de Pequim qualificam de “separatista perigoso”.

O consultor de investimentos, Luís Borges, entende que há dois níveis relacionados com estas ameaças: o das famílias mais abastadas que têm filhos a estudar no estrangeiro e que se preparam para qualquer eventualidade e o da conversa normal entre as pessoas, em que “ninguém liga nenhuma”.


Carlos Couto sente o mesmo e refere que “a população em si já não se preocupa, tornou-se uma coia recorrente, sem efeitos”. E até brinca referindo que já recebeu telefonemas de familiares que ouvem notícias sobre manobras militares chinesas, quando ele nem sequer se tinha apercebido disso.

Ricardo Oliveira sustenta que, de facto, a pressão de Pequim se dirige mais às elites para lhes mostrar que podem invadir quando quiserem e para as dissuadir dos pensamentos da declaração de independência.

Em Taiwan, há 331 portugueses registados oficialmente, a ilha é mais pequena do que Portugal e possui cerca de 24 milhões de habitantes.
Imagens: Nuno Miguel Fernandes
Nota: O número de portugueses residentes em Taiwan foi, entretanto, atualizado em relação ao que é referido na reportagem de televisão.