Um "boom" económico que não garante paz social

por Texto: António Louçã. Imagem: Carlos Oliveira. Edição: Nuno Patrício, Pedro Pina
Hannibal Hanschke, Reuters

A precarização de relações laborais em curso desde 2004 tem permitido retocar as estatísticas do desemprego, mas não apaziguou os ânimos no terreno. Em vésperas de eleições federais, a Alemanha está marcada por conflitos sociais importantes.

No final de maio, a RTP entrevistou Sascha Kraft, membro da Comissão de Trabalhadores da CFM, que então se encontrava em greve. A CFM (Charité Facility Management) é uma filial da Charité, criada para escapar ao cumprimento das obrigações decorrentes do acordo colectivo vigente naquele hospital.

Sascha Kraft

A criação da CFM consistiu no desmembramento e separação dos serviços não-médicos do hospital, para poder pagar aos seus trabalhadores com uma tabela diferente e muito mais desfavorável.

Kraft relata como os trabalhadores da CFM vêm lutando, desde há vários anos, por um acordo colectivo. Essa luta tem sido até aqui infrutífera, embora tenha obtido em 2011 a introdução de um salário mínimo no sector que teve carácter pioneiro para a introdução do salário mínimo a nível nacional.

Kalle Kunkel, dirigente do poderoso sindicato de serviços públicos que dá pelo nome de "ver.di" explica os motivos da greve actual com a aspiração de assimilar os trabalhadores da CFM ao acordo colectivo da Charité, no qual sempre deviam ter estado.

Kalle Kunkel

Kunkel acrescenta que este outsourcing inventado para contornar o acordo colectivo é "um escândalo social e político".

Entretanto, também um grupo de jovens apoiantes da greve falou à RTP pela voz de Stefan Schneider, docente universitário com contrato precário. Schneider manifestou a expectativa de que a greve da CFM atinja os seus objectivos e abra com isso um precedente válido para todos os sectores precarizados incluindo o seu.

Stefan Schneider

Já depois das entrevistas concedidas à RTP, a greve resultou num acordo em que o burgomestre de Berlim, o social-democrata Manfred Müller, se comprometeu a reverter, a partir de janeiro de 2019, a privatização daqueles serviços da Charité e, consequentemente, a incluir os seus trabalhadores no acordo colectivo daquele hospital.

Como seria de esperar, o anúncio desta vitória dos grevistas da CFM logo encorajou os trabalhadores do grupo de hospitais Vivantes a reivindicarem também salário igual para trabalho igual, e os acordos colectivos correspondentes.

Robert Bortfeldt, médico num hospital de Berlim, dá conta de um outro movimento em curso, que radica também na anterior luta da Charité e que tem eco noutros hospitais. Trata-se neste caso, não tanto de reivindicar melhores salários, mas de exigir uma proporção adequada entre o número de pacientes e o número de trabalhadores hospitalares.

Robert Bortfeldt

Poucos meses antes da vitória obtida na CFM, uma outra greve, ocorrida na Lufthansa, tinha conseguido após um mês inteiro de paralisações impor um aumento salarial, como relatou à RTP Ali Redha, membro da Comissão de Trabalhadores daquela transportadora aérea. Por alcançar ficaram as principais reivindicações dos trabalhadores, que pretendiam combater a precariedade, a subocupação dos turnos, a sobrecarga dos que estão de serviço.

Ali Redha

Benedikt Hopman, advogado especialista em Direito do Trabalho, antigo deputado no parlamento regional de Berlim, representou em tempos os operários da Daimler que há dois anos tinham feito em Bremen uma greve classificada pela empresa como "selvagem", para impedirem a externalização dos serviços de logística.

Benedikt Hopmann


Agora, ao olhar a greve da CFM, Hopman descobre nela motivações comuns à dos operários da Daimler em Bremen. Em ambos os casos, procurou-se combater a externalização de um serviço. Paradoxalmente, os operários da Daimler, que se antecipavam a uma ameaça nesse sentido, fracassaram no objectivo; ao passo que os trabalhadores da CFM, depois de terem sofrido a externalização, parecem agora em vias de conseguir revertê-la.

A história da greve da Daimler em Bremen é também instrutiva sobre os contornos da lei laboral alemã, em especial no que diz respeito à regulamentação da greve; e em geral sobre o carácter do Estado de Direito vigente na Alemanha.

Tal como noutros países europeus, Portugal incluído, a greve não é legal se não for convocada por um sindicato, com o respectivo pré-aviso. Mas, ao contrário de outros países europeus e das disposições da Carta Social Europeia, a greve na Alemanha tão-pouco será legal se se fizer sob a égide de reivindicações alheias à negociação dos acordos colectivos.

O direito de greve alemão é, assim, um dos mais restritivos do continente. Contra essas restrições, inspiradas depois da guerra por juristas reciclados do Terceiro Reich, tentou Hopman estabelecer um precedente, se necessário dirigindo-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

A Daimler, empenhada em evitar uma discussão mais política, retirou a repreensão que enviara aos grevistas. O registo de cada trabalhador ficou limpo, mas o episódio deixou sequelas psicológicas: as da intimidação, para quem futuramente possa a lembrar-se de propor uma paralização decidida no próprio local de trabalho.

Dum modo geral, a greve na Daimler de Bremen constitui uma parábola para os movimentos sociais na Alemanha actual. A disseminação da precariedade constitui um factor de intimidação, num momento em que o agravamento da situação social favorece um novo fôlego desses movimentos.
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