Venezuela: Reconversão económica causa apreensão entre os comerciantes

por RTP
Carlos Garcia Rawlins - Reuters

Pequenos e médios comerciantes de Caracas, entre eles os portugueses, estão apreensivos com a reconversão económica que a partir de segunda-feira eliminará cinco zeros ao bolívar forte para o converter na nova moeda, o bolívar soberano (Bs.S). A oposição já marcou uma greve geral para dia 21 de agosto

O receio estende-se à entrada em vigor do novo valor para o salário mínimo, que aumenta 35 vezes a partir das 00h00 de segunda-feira.

"Não sabemos como aplicar a reconversão (...) há que fazer contas para tirar cinco zeros, se fossem três os números passavam de milhões a milhares. Estamos apreensivos, inseguros", disse um comerciante à agência Lusa.

Leo Araguren, 45 anos, é sócio de uma queijaria, onde vende queijos e charcutaria, em San Bernardino, que desde sábado está fechada "até ver como vão ficar os preços".

Segundo este comerciante, as pessoas queixavam-se dos altos preços dos produtos, quando o salário mínimo integral (com todos os impostos) era de quase 5,2 milhões de bolívares e automaticamente tiravam três zeros aos preços.Várias pessoas disseram à Agência Lusa, que é difícil entender as medidas económicas que o Governo venezuelano está a aplicar e que esperam sejam acompanhadas por outras que permitam estimular a economia e melhorar as condições de vida num país "que é rico em petróleo mas onde a população é cada vez mais pobre".

"Havia clientes que antes compravam um quilograma de queijo e agora compram apenas um pouco de queijo ralado para o esparguete. Não temos um grande 'stock' e os preços já variavam quase todos os dias. Com a reconversão e um aumento de salário esperamos que tudo aumente de preço", frisou.

Até sexta-feira "um quilograma de queijo amarelo rondava os 19 milhões de bolívares, o queijo mozarella estava pelos 13 milhões de bolívares, o fiambre em 16 milhões e um cartão de (30) ovos, mais de 4 milhões (...) não é preciso ser matemático para perceber a relação entre o salário e os preços", explica Araguren.

Outro comerciante, o lusodescendente Juan de Sousa, proprietário de uma pequena mercearia, não sabe como vai ser com a entrada em vigor da reconversão económica e diz apenas que por ser feriado na segunda-feira, ainda não sabe se abre as portas do seu comércio na terça-feira.

"Confesso que tenho algum receio com o que poderá acontecer. As pessoas estão confundidas, têm o olhar como perdido. Houve um tempo em que faltava o que era básico. Hoje há pessoas que têm dificuldades até para comprar uma fruta, uma banana ou uma laranja. Algumas pedem as coisas e depois deixam na caixa porque não podem pagar", disse.

"Preocupado, desanimado e de mãos atadas" está também o comerciante António Rodrigues, proprietário de uma loja de víveres no Mercado de Quinta Crespo, que na semana passada, quando o mercado estava fechado, foi alvo de um roubo em que os ladrões levaram mais da metade da mercadoria.

"Tenho família para manter, não tenho investimentos nem poupanças em Portugal e não tenho para onde ir. O meu negócio era o mais abastecido do tipo, no mercado. Tanto assim que há pouco esteve aqui um ministro que falou desde aqui para a televisão", frisou.

Natural da Ponta do Sol, na ilha da Madeira, este emigrante já pensou pedir às autoridades portuguesas para conseguir uma ajuda económica para retomar o negócio que, no seu entender, será difícil, devido à crise político económica e social no país.
População está “triste” e preocupada
"Tristeza, preocupação e confusão, são as únicas palavras que existem para descrever o que sentimos. Este deve ser o único país do mundo onde ninguém fica contente com um aumento do salário", explicou uma cidadã à agência Lusa.

Com 55 anos de idade e radicada em Las Delícias, Caracas, Verónica Sánchez, doméstica, casada com um vendedor de água potável, tem dificuldades em entender o que está a acontecer e desabafa: "tiram cinco zeros à moeda e aumentam o salário mínimo entre 35 e 60 vezes, entre 3.200% e 5.900%, dependendo do câmbio que se faça".

Nervosa e com medo que o país "vá além da hiperinflação" usou, nos últimos dias, quase todo o dinheiro que dispunha para comprar vegetais, alimentos e outros produtos.

"Eu acreditava que o país já tinha tocado no fundo, mas agora percebo que não. Na sexta-feira, depois de [o Presidente da República] Nicolás Maduro anunciar o aumento do salário mínimo (de 5,9 milhões, para 180 milhões de bolívares fortes) tive que tomar uma pastilha para a hipertensão e tive dificuldades para dormir", frisou.

Carlos Hernández, 60 anos, carpinteiro, usou a tradicional "linha de crédito paralela" (na Venezuela os bancos oferecem créditos rápidos até ao dobro do valor dos cartões de crédito, sem afetar a disponibilidade dos mesmos) para comprar batatas, cebolas, massa, arroz e aveia, que diz que vão subir de preço e que não se estragam facilmente quando guardados.

"Foi a única coisa que pude fazer, porque com a reconversão monetária e a loucura deste aumento do salário mínimo, obriga a pensar como nos podemos proteger. Mas já gastei as poupanças que estavam a perder valor, enquanto tudo sobe de preço", disse.

Por outro lado, explicou que dentro de semanas acabarão as suas reservas alimentares e terá que "fazer contas à vida" para sobreviver, prevendo que "tudo vai ficar ainda mais difícil do que já era".

A professora de primária Naigualida Salazar, 30 anos, "não tem palavras" para explicar como será o futuro económico do país e diz que a situação a está "a empurrar a fazer o que muitos companheiros e companheiras já fizeram: emigrar para países vizinhos".

"Todos os dias nos assombramos por algo. O aumento do salário é uma provocação. Há um mês e meio que os médicos e enfermeiros protestam e não haviam recursos para aumentar-lhes o salário e agora, de repente, aumentam o salário a toda a gente e o governo vai assumir o pagamento dos salários dos empregados das pequenas e médias empresas por 90 dias. Não há como entender isto", frisou.
Novo salário mínimo a partir de segunda-feira
A partir das 00:00 de segunda-feira entra em circulação uma nova moeda na Venezuela, o bolívar soberano (Bs.S), o resultado de uma polémica reconversão monetária que eliminou cinco zeros ao atual bolívar forte.

A reconversão faz parte de um pacote económico que o Presidente venezuelano, Nicolás Maduro, diz ter como objetivo estabilizar a economia de um país produtor de petróleo que desde 2016 está oficialmente em “estado de exceção e de emergência económica".O bolívar soberano visa ainda simplificar as transações e registos contabilísticos e compreende papel-moeda de valor diferente: dois, cinco, dez, 20, 50, 100, 200 e 500 Bs.S) e duas moedas metálicas (de 50 centavos e 1 Bs.S).

Por outro lado, o país passará a ter também a cripto moeda venezuelana o petro, que será a unidade monetária contabilística de uso obrigatório para todas as operações relacionadas com a atividade petrolífera e cujo valor estará indexado ao valor do preço internacional do barril de crude e estará assente nas reservas de vários recursos naturais, como o petróleo, ouro, diamantes e gás natural.


A reconversão vem acompanhada de um novo sistema salarial cujo valor terá por base 0,50 de petro e que vai fazer aumentar quase 35 vezes o salário mínimo mensal dos venezuelanos, que passou de 5.19 Bs.S para 1.800 Bs.S (de 1,14 euros para 39,50 euros).

A reconversão e o uso do petro, que os analistas associam à aplicação de um sistema dual como em Cuba - com o peso cubano válido apenas na ilha e o peso convertível, válido para trocar por moeda estrangeira -, faz parte de um pacote económico.

Este pacote inclui o aumento dos preços dos combustíveis para os equiparar aos valores internacionais, uma medida que está a ser contestada pela população e que levou o Governo a anunciar a atribuição de subsídios para a compra de gasolina a quem se registar previamente e tiver o designado “cartão da pátria”, promovido pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), o partido no poder.Maduro decretou que o dia 20 de agosto – entrada em circulação da nova moeda -, seja considerado feriado.

A partir de segunda-feira passa também a existir um novo sistema de controlo cambial, que deixará de ter por base o dólar norte-americano, para estar indexado ao petro, e que substitui a legislação que vigorava desde 2003.

A troca de divisas deixa de estar sujeita a penalizações mas continuam a haver restrições para a livre obtenção local, oficial, de moeda estrangeira.

Esta mudança determinará o preço local dos produtos, que deixam de estar vinculados ao bolívar para serem afixados pelo executivo com base na cripto moeda venezuelana.

O Governo promete austeridade e zero de défice fiscal e aumentou o IVA de 12% para 16% exonerando os bens de consumo em massa e de primeira necessidade para a população, tais como alimentos, medicamentos e materiais para a agroindústria e as grandes transações financeiras passarão a pagar entre 0 e 2% de imposto sobre o valor das mesmas.

Vários economistas venezuelanos já expressaram preocupação pelas medidas anunciadas as quais, consideram, contribuirão para o amento da inflação, num país que regista já hiperinflação e que deverá, segundo o Fundo Monetário Internacional terminar 2018 com uma subida anual acumulada de 1.000.000%.

Os economistas estão de acordo que a economia passe a estar indexada ao preço internacional do petróleo mas questionam a confiança do petro, que dizem, não é reconhecido fora do país.

Coincidem que a reconversão monetária e as medidas económicas vão ocasionar, nos próximos dias, confusão nos consumidores, principalmente no setor privado e comercial e advertem que há fatores que poderão levar a um "ambiente de agressiva desvalorização" e a uma etapa de "mais agressiva hiperinflação".
Oposição convoca greve-geral 

A oposição venezuelana convocou uma greve-geral para 21 de agosto em protesto pela reconversão da moeda e contra as recentes medidas económicas anunciadas pelo Presidente Nicolás Maduro.

A greve-geral foi convocada no sábado pelos partidos da oposição Primeiro Justiça, Vontade Popular e Causa R.

"Convocamos, para terça-feira, 21 de agosto, um primeiro dia de protesto e de greve nacional, contra (Nicolás) Maduro, contra a hiperinflação e a fome", lia-se nas mensagens publicadas na rede social Twitter.

Entretanto, em comunicado, a mesma oposição referia que sexta-feira, dia em que o Presidente Nicolás Maduro anunciou várias medidas económicas e um aumento de 35 vezes do salário mínimo dos venezuelanos, "será recordado, na história, como o dia mais negro que os venezuelanos jamais tiveram".

"A ditadura, no seu afã infinito de destruição (...), depois de ter roubado centenas de milhares de milhões de dólares, anunciou a disposição criminosa de passar a saquear diretamente as algibeiras a um povo que já está a viver uma aguda pobreza e sob as calamidades da falta de serviços básicos, como água e luz elétrica", afirma o documento.Para a oposição, o aumento do salário mínimo anunciado pelo chefe de Estado vai representar desemprego e a diminuição real do poder de compra dos trabalhadores, o que implicará "mais sofrimento e pobreza".

Por outro lado, denuncia que nos próximos dias muitas empresas vão encerrar as portas, deixando milhões de trabalhadores desempregados.

Na mesma nota, os opositores de Maduro sublinharam que o regime aumentou o IVA de 12% para 16%, enquanto isenta de pagamento de impostos as empresas que exploram os "bens naturais" do país.

A oposição pretende "ativar" a população para participar em vários propostas contra as medidas económicas, cujos pormenores vão ser divulgados nos próximos dias.

C/Lusa
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