Visão Global 2017: Carlos Gaspar

por Carlos Gaspar - Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-UNL), Professor Associado Convidado na FCSH/UNL
DR

Personalidade do ano: Emmanuel Macron
Emmanuel Macron, o meteoro que interrompeu a crise europeia, merece ser reconhecido como a personalidade do ano.

A catástrofe estava anunciada. Depois do Brexit e da eleição de Donald Trump, a eleição presidencial francesa parecia ser o último acto no enterro democrático da ordem liberal, submersa pela vaga nacionalista na política ocidental.

Com efeito, o Partido Socialista entregou a escolha do seu candidato às bases, que lhe devolveram um personagem desconhecido. Depois, os Republicanos escolheram um católico eurocéptico para fazer frente a Marine Le Pen, mas esqueceram-se de fazer um escrutínio sério ao antigo Primeiro Ministro e a candidatura, à partida vencedora, de François Fillon tornou-se um vale de lágrimas. O caminho estava aberto para Marine Le Pen ganhar as eleições e a Frente Nacional passar a ser o primeiro partido na Assembleia Nacional.

Nas vésperas da eleição alemã, depois da débâcle britânica e da surpresa americana, era impossível minimizar as consequências da eleição de Marine Le Pen. Nesse cenário, em que está em causa a sobrevivência da União Europeia, Emmanuel Macron começa a sua campanha em Orléans, sob a égide de Joana d’Arc, e anuncia como programa a salvação conjunta da França e da Europa. Contra todas as expectativas, um candidato sem curriculum político desfaz os seus adversários, faz-se eleger Presidente da República e cria do nada um movimento - En Marche ! - que ganha as eleições para a Assembleia Nacional com uma larga maioria.

Macron destruiu e salvou a V República. Nunca tinha sido eleito um Presidente à margem dos partidos e a eleição presidencial, num sobressalto gaullista, precipita a eleição dos candidatos do En Marche e dá a Macron a sua indispensável maioria parlamentar, ao mesmo tempo que deixa por terra o Partido Socialista e os Republicanos, desigualmente humilhados pela volatilidade sem precedentes do eleitorado francês.

O programa de Macron é tão subversivo como as origens da nova maioria presidencial e propõe uma reforma liberal no país mais estatista da Europa. Essa revolução - o termo preferido do Presidente - é indispensável para a França recuperar a sua posição na primeira linha da construção europeia, dominada pela Alemanha desde as crises do Euro e dos refugiados. Macron defende a glória da França em nome da “soberania da Europa” e tem uma boa hipótese de tornar o pai da integração comunitária no pivot da balança europeia.

Com efeito, a polarização crescente entre a Grã-Bretanha e a Alemanha torna indispensável a mediação da França para impedir a ruptura entre a “Europa continental” e a “Europa atlântica”. Paris está ao lado de Londres, seu par europeu no Conselho de Segurança das Nações Unidas e no círculo restrito das potências nucleares, para contrabalançar o “momento unipolar” de Berlim. Merkel não pode garantir a estabilidade da União Europeia sem Macron e, nesse quadro, o Presidente francês pode impor as suas condições políticas para evitar tanto o fim do directório tripartido, como uma crise nas relações com os Estados Unidos, que continuam a ser o parceiro indispensável para conter uma “Europa alemã”.
Acontecimento do ano: A crise coreana
A crise coreana domina a política internacional desde a inauguração do Presidente Donald Trump até à entronização do Presidente Xi Jinping.

O feito é, em si mesmo, notável. Toda a gente estava à espera que o novo Presidente norte-americano, notoriamente incompetente no domínio da diplomacia internacional, fosse confrontado, tal como os seus predecessores, com uma crise provocada pela China ou pela Rússia, para pôr à prova a sua têmpera.

Em Abril, o incidente de Khan Shaykhun, com o recurso às armas químicas pelas forças de Bashar al-Assad, foi um primeiro ensaio. Washington respondeu com determinação e com moderação: os mísseis norte-americanos destruíram instalações militares da força aérea síria e sinalizam a Moscovo a obrigação de controlar a sua clientela local. Kim Jong-un entra em jogo na sequência da intervenção norte-americana na Síria e lança um míssil no mar do Japão. A resposta dos Estados Unidos é contida: por um lado, envia uma esquadra, com o porta-aviões USS Carl Vinson para mostrar a sua determinação na defesa dos aliados e, por outro lado, responsabiliza a China pelo mau comportamento da Coreia do Norte.

Mas Kim, ao contrário de Bashar, não está preparado para ceder à pressão do seu único aliado formal e, pelo contrário, quis pôr à prova não só Trump, como Xi Jinping. Nesse contexto, Kim inicia uma escalada prolongada, incluindo a ameaça de afundar o USS Carl Vinson, seguido pelo lançamento de um míssil intercontinental (no dia 4 de Julho), pela ameaça de atingir alvos nas proximidades de Guam, por tiros de mísseis sobre a Coreia do Sul e o Japão e por um ensaio nuclear subterrâneo em Setembro. Washington responde a cada passo na escalada norte-coreana, que força a China e a Rússia a apoiar as propostas dos Estados Unidos ao Conselho de Segurança para isolar diplomaticamente a Coreia do Norte e agravar o regime de sanções contra o sultanato comunista de Pyongyang.

A crise prolongada confirma que a questão nuclear coreana está no centro das relações bilaterais entre os Estados Unidos e a China. De certa maneira, Washington e Pequim têm a obrigação de convergir numa política de limitação da proliferação das armas nucleares: os Estados Unidos não querem e a China muito menos quer que o Japão se torne uma potência nuclear, perante a ameaça norte-coreana. Porém, o regime comunista chinês também não pode deixar cair o regime comunista norte-coreano, cuja sobrevivência política parece inseparável do reconhecimento da Coreia do Norte como um Estado com armas nucleares. Trump parece indiferente à natureza dinástica ou ideológica do regime político de Kim Jong-un, mas quer que Xi Jinping garanta que os seus clientes comunistas submetem o programa nuclear militar norte-coreano a um acordo internacional e deixam de pôr em causa o status quo regional.

A crise nuclear coreana - o método de Kim – serve para jogar com as divergências entre Washington e Pequim de modo a garantir a continuidade do regime comunista e impedir a sua subordinação à China.
pub