Democracias morrem com subtileza

Democracia e jornalismo precisam de liberdade. Sem ela são uma farsa. Ficou célebre a ideia de Thomas Jeffersson, o terceiro presidente dos EUA, que, em 1787, disse: "Se tivesse que escolher entre um governo sem jornais ou jornais sem um governo, escolheria sem hesitar a segunda hipótese." Mesmo que muito repetida, vale a pena lembrá-la por estes dias de incerteza.

Como vale a pena lembrar os pais fundadores da democracia americana, que não tinham ilusões sobre a condição humana. Por isso, James Madison se preocupou com freios e contrapesos: "Que a ambição contrabalance a ambição." Dizia ainda Madison: "Se os homens fossem anjos nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controlos externos nem internos sobre o governo."

Mas, como os homens são homens, é preciso habilitar o governo a controlar os governados e, depois, obrigar o governo a controlar-se a si próprio. Múltiplos controlos e múltiplas partilhas numa sociedade pluralista em que é tão importante defender os governados da opressão dos seus governantes como defender cada parte da sociedade da injustiça da outra parte. Princípios vitais para uma democracia que contagiou o mundo desde a Revolução Americana. Foram os totalitarismos dos séc. XX que a colocaram em crise. Só no pós-guerra começou a reabilitar-se.

A liberdade é, portanto, uma condição da democracia. Parece óbvio, mas nem por isso é um adquirido, seja porque a liberdade é um bem raro (segundo os dados da Freedom House, apenas 40% da população mundial é realmente livre); seja porque as ‘democracias plenas’ não vão além das duas dezenas de países e as ‘democracias fracas’ chegam apenas a seis dezenas de países (dados da Economist, que avalia o pluralismo, as liberdades civis e a cultura política). Portugal é encarado como uma ‘democracia fraca’ e aparece em 33.º lugar. Ainda assim, os progressos democráticos mundiais são significativos. Paradoxalmente, nunca terá sido tão grande a insatisfação com a democracia.

A História acelerou. A comunicação e a vida ganharam velocidade ao mesmo tempo que o crivo do jornalismo e o escrutínio democrático enfraqueceram.

Daniel Ziblatt, um cientista político da Universidade de Harvard, enunciou há algumas semanas, no Público, alguns critérios que ajudam a avaliar os perigos que atravessam a democracia contemporânea. A saber: fraco compromisso com as normas democráticas; negação da legitimidade dos adversários políticos; tolerância ou encorajamento da violência; e predisposição para limitar as liberdades cívicas dos opositores, incluindo os media.

A regressão, ou o que se tem chamado de «fadiga democrática», reflecte uma mudança de valores. Desvalorizam-se as liberdades individuais a favor de identidades nacionais, religiosas, culturais. O fracasso de governos e partidos, a falência das políticas financeiras, o descrédito de muitos políticos, a corrupção, abriram portas ao engano e ao simplismo de demagogos e populistas.

O jornalismo não é alheio a estes movimentos. O advento da Internet e depois das redes sociais criaram novos ambientes de comunicação e informação. Na última década, os jornais diários perderam cerca de metade da sua circulação impressa e 70% das receitas publicitárias. Em contrapartida, multiplicaram a sua audiência digital. Chegam a muitos milhões de utilizadores, embora os seus modelos de negócio não tenham conseguido nem recuperar as receitas perdidas nem equilibrar as contas.

Vivemos – dizem-nos – no tempo da pós-verdade. Há algumas décadas, a Filosofia queria convencer-nos de que não havia verdade, mas apenas interpretação. Hoje, a verdade parece coisa do passado, o relativismo confunde-se com crença ou convicção. Tudo pode vir à Rede. Tornou-se mais difícil discernir o que é verdadeiro do que é falso. As fake news tornaram-se armas de arremesso. Não são apenas falsas, são inventadas para serem verosímeis, para confundirem e manipularem os menos cépticos. São tantas, e de tão repetidas, difíceis de combater.

Passámos do perigo de se acreditar em tudo o que está online para o perigo de não se acreditar em nada do que se lê. Pior, há quem pense que a diferença entre a verdade e a mentira é mera questão de opção.

Os factos desvalorizaram-se a favor das emoções, dos afectos ou das crenças. Parece ser mais eficaz criar uma mentira conveniente do que contar uma verdade. Nunca a informação foi tão acessível. Nunca terá sido tão duvidosa.

Na economia ou na política, a grande questão que se coloca é a de saber se seremos, ou não, fáceis de manipular. Talvez sejamos. Desde logo porque não nos apercebemos de que muita da informação que é colocada ao nosso dispor é apenas a que vai ao encontro do nosso perfil, das nossas preferências. Nem sempre nos confrontamos com informação contrastada, nem sempre nos confrontamos com outros pontos de vista.

Face a tudo isto, talvez nunca como hoje o jornalismo tenha tido tanta razão de ser. Para vivermos, para tomarmos decisões fundamentadas, para distinguirmos o trigo do joio, precisamos de notícias credíveis, que nos digam o que se passa, não apenas onde, quando, quem, mas também como, porquê e em que contexto. E para este efeito precisamos de jornalistas profissionais, que tenham condições para tornar interessante e relevante aquilo que é significativo, e que façam da disciplina da verificação a essência do seu trabalho.

Faz falta bom jornalismo, jornalismo de qualidade, útil, distanciado dos poderes, independente, fiável, plural. Sem ele tolhe-se a liberdade e não há democracia plena que resista.

Termino com um alerta, um alerta do já citado professor de Harvard, Daniel Ziblatt: "Hoje, as democracias morrem com subtileza, não com golpes de Estado e tanques na rua. Estar vigilante é uma obrigação de todos." E estar vigilante, digo eu, é estar bem informado, atento ao espaço público e armado de sentido crítico.

O maior inimigo da liberdade é a ausência de sentido crítico.

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