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A hipocrisia do elogio

Fico sempre maravilhado com a quantidade de elogios que encontramos para as pessoas que morrem, com o grau de conhecimento que parecemos ter delas e com os comentários que alimentam a ideia de que passámos longas temporadas juntos, algumas delas recentemente, mesmo que quase as ignoremos quando estão vivas por quase não darmos por elas ou não termos tempo para lhes dedicar. E digo NÓS, porque não há ninguém impune neste exercício de hipocrisia elogiosa post mortem. Uns mais, outros menos, todos temos os nossos pecados em matéria de falhas com os nossos amigos.

Já não conto com os elogios que se dão a todos os que morrem, mesmo a pessoas de quem nunca gostámos e com não tínhamos já qualquer relação. Isso fica para outra crónica

Na nossa laboriosa e atarefada via diária raramente encontramos tempo para nós - para cuidarmos de nós próprios e nos mimarmos - e muito menos para os outros, e adiamos vezes sem conta os encontros, almoços, jantares e cafés prometidos de forma leviana para nos aliviar o peso de uma consciência quase sempre esmagada pela certeza de que estamos a mentir a nós próprios: não teremos tempo para cumprir quase nenhuma dessas promessas.

Quando os nossos amigos ou familiares partem de forma precipitada ficamos com o remorso a calcar-nos e a doer e é nos elogios públicos que acreditamos estar a redenção por todos os momentos que escolhemos não partilhar devido a todas as coisas "importantes" que sempre tivemos para fazer.

Há três anos e meio escrevi um artigo que volto a reeditar nesta crónica. Falava precisamente das mortes que nos acontecem todos os dias, de forma inesperada e sem tempo para nos despedirmos condignamente ou para desfrutarmos de momentos que nunca mais poderemos repetir e que não vão passar de meras memórias que nos magoam pela raridade.

A única actualização a este artigo é que desde esse dia morreram muito mais pessoas a quem não dediquei tempo suficiente, mas consegui cumprir uma boa parte do compromisso comigo mesmo: desperdiçar menos tempo de forma inútil e dedicá-lo mais às pessoas de quem gosto. Claramente insuficiente.


Morrem-me pessoas todos os dias

(artigo publicado a 5 de Fevereiro de 2016)

Quando era miúdo não tinha medo do escuro, não tinha medo de filmes de terror, não tinha medo "do velho que vem aí se não comeres", nem do papão. Tinha medo da morte. Era uma realidade longínqua que nunca tinha suportado, mas a ideia de ausência permanente deixava-me angustiado de tal forma que foi das primeiras coisas que me levaram a passar noites em claro ou mal dormidas.

Depois começaram a morrer-me pessoas. O meu colega Vítor foi dos primeiros, ou pelo menos o primeiro que não era "uma estrelinha no céu". O rapaz que ontem tinha estado ali, mas que naquela manhã já não acordou e a quem todos gozávamos por se vestir "à seminarista"- foi das primeiras crianças que vi a usar gravata na escola ainda no ciclo preparatório - e por falar com pronúncia de "bijeu". Acho que nunca mais gozei com ninguém desde essa altura pelas diferenças de comportamento, culturais ou de gosto próprio em relação às indumentárias.

Estivemos semanas a digerir a injustiça do nosso comportamento de crianças em idade parva, quando humilhar os outros parecia ser a forma de expiarmos as nossas próprias fraquezas. O Vítor morreu-nos naquela manhã e deixou-nos a terrível certeza em relação a uma suspeita que todos alimentávamos. Ao contrário do que nos diziam as pessoas não morriam velhinhas. Morriam em qualquer idade. E as crianças também morriam.

Depois morreu-me um dos melhores amigos de sempre, daqueles que nos faziam acreditar que éramos imortais. O Orlando (recentemente morreu outro grande companheiro de brincadeiras, o Zé Olas Pinto). Era tão livre a pensar e a fazer que se tornou insuportável imaginar que ficaria preso para sempre naquela campa fria do cemitério que conhecíamos tão bem desde miúdos. A referência geográfica limite da nossa infância. Ir para lá do cemitério era ir para o estrangeiro. O Orlando nunca mais iria a lado nenhum connosco e isso doeu-nos muito. Acabou por nos unir a todos em redor das suas loucas histórias e insolências escolares.

Há uns anos morreram-me os meus avós. Pessoas que adorava e que fazem parte das minhas melhores memórias de infância. Uma dor insuportável que aparece sempre colada às pessoas insubstituíveis no nosso coração. Pessoas para quem eu tinha sempre razão e os meus pais não - coisa maravilhosa na infância -, pessoas sempre carinhosas comigo que eu só via no máximo três vezes por ano. Não há nada que substitua uma festa no rosto dada pela mão sedosa dos avós, mesmo que estejam sulcadas por rugas profundas que atestam uma vida de muitas dificuldades.

Agora, muitos anos mais tarde, começam a morrer-me as pessoas com quem trabalhei, com quem aprendi, que me habituei a admirar e a citar como bons exemplos desta profissão que ao contrário do que dizem é mesmo a mais velha do mundo. Morreram-me o Fernando de Sousa, o Etiano Branco, o José António Salvador, o Jorge Pena, o João Ferro e muitos outros (recentemente morreu a minha querida Ana Franqueira e a querida e doce "Avó" Isabel).

Muitos deles morreram sem que se cumprisse uma coisa tão simples como almoçarmos ou jantarmos sem hora marcada para o fim, para actualizarmos conversas adiadas e cumprirmos velhas promessas. Salvou-se o Jorge Pena com quem partilhei umas belas doses de ameijoas e um branco fresquinho com vista para o rio na margem de Alcochete. A Xana nunca soube em vida que tínhamos violado a proibição de consumo alcoólico, como se fosse o último desejo de um condenado. Quando lhe contei ela sorriu com saudades dessa teimosia saudável que não resistiu ao bicho nos pulmões.

As pessoas morrem-nos todos os dias e com elas morre um pouco de nós. Que nos acorde a urgência de vivermos e cumprirmos as nossas pequenas promessas. A de cumprirmos os rituais simples da amizade será uma das mais prioritárias.

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