"Não quero é que a coletividade feche". Associação cultural centenária em Lisboa teme pressão imobiliária

por Gonçalo Costa Martins - RTP

O presidente da Sociedade Musical Ordem e Progresso receia ter os dias contados no velho edifício onde fica a associação com 125 anos. Com o caso no tribunal, o proprietário nega, por agora, que o imóvel venha a ser um alojamento local.

Faltam trinta minutos para começar o espetáculo na Sociedade Musical Ordem e Progresso (SMOP), mas o ensaio está atrasado. “Já devia ter acabado”, conta timidamente Gustavo Juventino, enquanto trata dos níveis de som no palco.

O jovem anda de um lado para o outro. Do primeiro andar da sala, desce dois lanços de escadas, percorre o salão e sobe ao palco para mexer no computador. Volta a fazer o mesmo caminho várias vezes porque faz “de tudo um pouco”: toca clarinete e ainda regula as luzes.

Gustavo é um dos seis elementos da “Sexta Língua”, que se preparam para declamar textos modernistas. No palco, ouve-se Fátima Apolinário a preparar o “Manifesto Anti-Dantas”, de Almada Negreiros, sendo esta a segunda sessão que o grupo realiza na SMOP.

“Um palco antigo muito bonito para receber o público e assim atuarmos na poesia e nas artes”, descreve Nelson Ricardo, organizador do espetáculo.

O salão da SMOP recebe espetáculos de literatura
O receio de fechar a atual casa da associação
Saindo do salão, dois corredores levam até à sala de convívio da coletividade, onde se joga às cartas e fuma, com as janelas abertas. É aqui que se encontra Carlos Melo, presidente da SMOP, à conversa com outros sócios, entre os mais de 460 que apoiam a associação.

A atravessar 125 anos de existência, o futuro parece incerto ou não estivesse a SMOP a ser pressionada: “Eles querem fechar [a coletividade] de qualquer maneira (…) estão a arranjar todas as artimanhas para isso”, diz Carlos Melo.

Reportagem na Antena 1

O dirigente acredita mesmo que aquele espaço arrendado vai dar lugar a um alojamento local. “Soubemos por uma pessoa que se dá muito bem com eles”, relata, sem revelar quem é.

“Eles” são a empresa Opulentdiscovery, proprietária do prédio onde se situa a Sociedade Musical Ordem e Progresso e apartamentos para habitação. Em resposta por escrito à Antena 1, fonte da empresa diz que o arrendamento por alojamento local “não se encontra em equação”, nem “segundo julgamos saber (…) sequer [se] estão a ser emitidas novas licenças para o efeito”.

Aponta antes para a “requalificação do prédio que se encontra em mau estado de conservação” para que no futuro o edifício seja administrado pelo proprietário “da forma que melhor entender, no momento em que ficarem concluídas as respetivas obras”.
A escadaria que dá acesso ao primeiro andar do prédio, casa da SMOP

São várias as acusações entre as duas partes e que já chegaram a tribunal: falta de licença para promover espetáculos, falta de condições de segurança e rendas em atraso. Carlos Melo nega tudo. Afirma que as rendas já estão em dia, que as falhas apontadas pela Proteção Civil de Lisboa já foram corrigidas e que têm autorização como promotor de espetáculos - informação esta confirmada pela Antena 1 junto da Inspeção-Geral das Atividades Culturais.

Perante a incerteza, Carlos Melo pede ajuda à Câmara Municipal de Lisboa, questionando se a autarquia não poderá ceder um espaço na freguesia, de forma a continuar perto da comunidade onde cresceu. “Eu não quero é que a coletividade feche”, sublinha.

Contactada, a autarquia não respondeu até agora se estaria disposta a apoiar a associação ou se as falhas de segurança apontadas pela Proteção Civil municipal foram totalmente corrigidas.
Um passado com memórias e um futuro com... bifanas
O futuro pode parecer incerto, mas uma coisa é certa: Carlos Melo já tem sucessor na cozinha e na receita das bifanas. “Quando a gente chega aos 65 anos, passa [a receita] a uma pessoa só”, diz, falando numa tradição na SMOP e apontando depois para o jovem Diogo Santos, presente na sala de convívio.

“Sabe que elas têm de ficar 20 horas de molho em vinha de alhos. O tempero também já sabe”, descreve, sem falar dos condimentos, que fazem parte do segredo partilhado agora pelos dois.

“Eu estou cá desde sempre”, afirma Diogo, com 21 anos e uma vida ligada à SMOP. Por agora, vão dividindo mãos na cozinha, com Carlos no leme e Diogo “na retaguarda”, a ajudar nos dias em que grandes grupos jantam na coletividade.

Na sala de convívio estão sócios da coletividade

Entre tunas universitárias, festas com grupos mais velhos e, mais recentemente, literatura, são várias as décadas de memórias e encontros no salão da Rua do Conde.

O pai de Nelson Ricardo, organizador da sessão literária, não vinha aqui há mais de 50 anos. “Já nem sabia onde é que era isto”, admite Rui Costa. Recorda a arrumação dos corredores: paredes brancas e azuis, com azulejos e algumas manchas negras, e uma vitrine de fotografias, troféus, placas e pratos. Diferenças desde a última vez? “Praticamente não houve nenhuma evolução, isto está muito antigo”, responde.

Junto à bilheteira, os corredores não tiveram “nenhuma evolução”

Diferentes eram as atividades que passavam pelas tábuas de madeira do salão. “Os jovens encontravam-se neste tipo de coletividades. Era uma coisa muito diferente do que é atualmente”, diz Rui Costa, recordando os bailes que enchiam a SMOP aos domingos.

Dessas festas nasceram até casais, afirma o presidente Carlos Melo. Os homens “queriam era ver as raparigas e dançar com elas. O intuito deles era namoriscar”, conta.

As festas continuam na Sociedade Musical Ordem e Progresso, juntamente com espetáculos de música e de literatura. O local é que pode ter os dias contados.

 A Rua do Conde pode vir a perder a associação centenária
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