"Não quero é que a coletividade feche". Associação cultural centenária em Lisboa teme pressão imobiliária
O presidente da Sociedade Musical Ordem e Progresso receia ter os dias contados no velho edifício onde fica a associação com 125 anos. Com o caso no tribunal, o proprietário nega, por agora, que o imóvel venha a ser um alojamento local.
O jovem anda de um lado para o outro. Do primeiro andar da sala, desce dois lanços de escadas, percorre o salão e sobe ao palco para mexer no computador. Volta a fazer o mesmo caminho várias vezes porque faz “de tudo um pouco”: toca clarinete e ainda regula as luzes.
Gustavo é um dos seis elementos da “Sexta Língua”, que se preparam para declamar textos modernistas. No palco, ouve-se Fátima Apolinário a preparar o “Manifesto Anti-Dantas”, de Almada Negreiros, sendo esta a segunda sessão que o grupo realiza na SMOP.
“Um palco antigo muito bonito para receber o público e assim atuarmos na poesia e nas artes”, descreve Nelson Ricardo, organizador do espetáculo.
Saindo do salão, dois corredores levam até à sala de convívio da coletividade, onde se joga às cartas e fuma, com as janelas abertas. É aqui que se encontra Carlos Melo, presidente da SMOP, à conversa com outros sócios, entre os mais de 460 que apoiam a associação.
A atravessar 125 anos de existência, o futuro parece incerto ou não estivesse a SMOP a ser pressionada: “Eles querem fechar [a coletividade] de qualquer maneira (…) estão a arranjar todas as artimanhas para isso”, diz Carlos Melo.
O dirigente acredita mesmo que aquele espaço arrendado vai dar lugar a um alojamento local. “Soubemos por uma pessoa que se dá muito bem com eles”, relata, sem revelar quem é.
“Eles” são a empresa Opulentdiscovery, proprietária do prédio onde se situa a Sociedade Musical Ordem e Progresso e apartamentos para habitação. Em resposta por escrito à Antena 1, fonte da empresa diz que o arrendamento por alojamento local “não se encontra em equação”, nem “segundo julgamos saber (…) sequer [se] estão a ser emitidas novas licenças para o efeito”.
Aponta antes para a “requalificação do prédio que se encontra em mau estado de conservação” para que no futuro o edifício seja administrado pelo proprietário “da forma que melhor entender, no momento em que ficarem concluídas as respetivas obras”.
A escadaria que dá acesso ao primeiro andar do prédio, casa da SMOP
São várias as acusações entre as duas partes e que já chegaram a tribunal: falta de licença para promover espetáculos, falta de condições de segurança e rendas em atraso. Carlos Melo nega tudo. Afirma que as rendas já estão em dia, que as falhas apontadas pela Proteção Civil de Lisboa já foram corrigidas e que têm autorização como promotor de espetáculos - informação esta confirmada pela Antena 1 junto da Inspeção-Geral das Atividades Culturais.
Perante a incerteza, Carlos Melo pede ajuda à Câmara Municipal de Lisboa, questionando se a autarquia não poderá ceder um espaço na freguesia, de forma a continuar perto da comunidade onde cresceu. “Eu não quero é que a coletividade feche”, sublinha.
Contactada, a autarquia não respondeu até agora se estaria disposta a apoiar a associação ou se as falhas de segurança apontadas pela Proteção Civil municipal foram totalmente corrigidas.
Um passado com memórias e um futuro com... bifanas
O futuro pode parecer incerto, mas uma coisa é certa: Carlos Melo já tem sucessor na cozinha e na receita das bifanas. “Quando a gente chega aos 65 anos, passa [a receita] a uma pessoa só”, diz, falando numa tradição na SMOP e apontando depois para o jovem Diogo Santos, presente na sala de convívio.
“Sabe que elas têm de ficar 20 horas de molho em vinha de alhos. O tempero também já sabe”, descreve, sem falar dos condimentos, que fazem parte do segredo partilhado agora pelos dois.
“Eu estou cá desde sempre”, afirma Diogo, com 21 anos e uma vida ligada à SMOP. Por agora, vão dividindo mãos na cozinha, com Carlos no leme e Diogo “na retaguarda”, a ajudar nos dias em que grandes grupos jantam na coletividade.
Entre tunas universitárias, festas com grupos mais velhos e, mais recentemente, literatura, são várias as décadas de memórias e encontros no salão da Rua do Conde.
O pai de Nelson Ricardo, organizador da sessão literária, não vinha aqui há mais de 50 anos. “Já nem sabia onde é que era isto”, admite Rui Costa. Recorda a arrumação dos corredores: paredes brancas e azuis, com azulejos e algumas manchas negras, e uma vitrine de fotografias, troféus, placas e pratos. Diferenças desde a última vez? “Praticamente não houve nenhuma evolução, isto está muito antigo”, responde.
Diferentes eram as atividades que passavam pelas tábuas de madeira do salão. “Os jovens encontravam-se neste tipo de coletividades. Era uma coisa muito diferente do que é atualmente”, diz Rui Costa, recordando os bailes que enchiam a SMOP aos domingos.
Dessas festas nasceram até casais, afirma o presidente Carlos Melo. Os homens “queriam era ver as raparigas e dançar com elas. O intuito deles era namoriscar”, conta.
As festas continuam na Sociedade Musical Ordem e Progresso, juntamente com espetáculos de música e de literatura. O local é que pode ter os dias contados.