Entre a aliança e o protectorado britânico

A Primeira República fora instaurada no meio de um clamor patriótico contra as humilhações que o regime monárquico sofria docilmente à Inglaterra. Mas não tardou muito até voltar a instalar-se nas relações entre a pequena aliada e a grande potência o mesmo tom que as caracterizava desde 1383. O tempo e o modo da intervenção de Portugal na Primeira Guerra Mundial revelam, apesar do momento dramático, o regresso à normalidade de uma submissão velha de mais cinco séculos.



Durante os dois primeiros anos da guerra, a República portuguesa procurou de formas diversas fazer aceitar Portugal como país beligerante. Interessava-lhe consolidar as relações com a Inglaterra, abaladas pela mudança de regime, e interessava-lhe garantir um assento na conferência de paz que viesse a fazer-se. 

Os dirigentes republicanos receavam que, no momento de se procurar uma solução política para o conflito, os interesses do colonialismo português fossem os primeiros sacrificados. A Inglaterra - que facilmente torpedeara a fantasia do “mapa cor-de-rosa” - havia muito que dava mostras de desprezar as justificações da presença portuguesa em África. Tal como a sua política era conhecida em Lisboa, não hesitaria em lançar mão das colónias portuguesas como moeda de troca para apaziguar os impérios centrais.

E, com efeito, o Governo de Londres foi vetando a pressão para Portugal entrar na guerra, ignorando mesmo o facto de já existir nas colónias um estado de beligerância de facto. Queria as mãos livres para negociar sem ser extorvado por objecções de um pequeno aliado que não se enxergava. Pesava os custos políticos de admitir uma beligerância portuguesa e, no outro prato da balança, os benefícios militares. Não era difícil concluir que os custos políticos podiam ser desproporcionados para a insignificância dos benefícios militares.

Quando, a partir do final de 1915, a Inglaterra começa a mudar de política sobre a intervenção portuguesa na guerra, essa viragem deve-se a um conjunto de circunstâncias que estão a mudar rapidamente. 

O abismo entre as duas alianças inimigas já se cavou demasiado fundo para uma negociação oferecer viabilidade a curto prazo. Cada vez mais, a dinâmica é a de uma luta que só pode concluir-se com a capitulação incondicional de um dos lados – como depois virá a confirmar-se nas leoninas condições de Versalhes. 

As colónias portuguesas perderam parte dos seus atractivos como moeda de troca.

Por outro lado, a utilidade de qualquer beligerância já deixou, nessa guerra total, de medir-se apenas pelo poder de fogo dos seus exércitos. 

A sangria desatada de “recursos humanos”, entretanto com milhões de mortos na guerra, torna interessantes as reservas laborais dos países que até aí permaneciam neutros. Além disso, os estragos que a guerra submarina fez nas frotas aliadas tornam interessantes as frotas neutrais, e nomeadamente o apresamento de navios inimigos refugiados nos portos neutrais ou que aí foram surpreendidos, dois anos antes, aquando do início das hostilidades.

A Inglaterra irá, assim, acabar por admitir a beligerância portuguesa. Mas essa admissão não significa que a República portuguesa passe a ser tratada com menos sobranceria. As discussões dos dois anos seguintes, tal como nos surgem na correspondência diplomática entre os dois países, giram principalmente em torno de três temas:

a) quem comanda as tropas portuguesas;
b) quem utiliza a tonelagem da frota mercante portuguesa;
c) como se utiliza, e quem utiliza, a força de trabalho disponível em Portugal e colónias.

Desde o início do Corpo Expedicionário Português (CEP) que as discussões sobre o comando das tropas farão parte da rotina. Mas elas dão lugar a crises agudas em pelo menos três circunstâncias. 

Uma diz respeito à rebelião de artilheiros portugueses no campo de treino de Horsham, em Inglaterra; outra, ao descalabro das tropas portuguesas em 9 de Abril, que praticamente marca o dobre de finados da autonomia do CEP; outra, enfim, à pretensão britânica de recrutar jovens moçambicanos, quer para as tropas de combate da África Oriental, quer para a função de carregadores dessas tropas.

No que se refere a esta última pretensão, ela é manifestada ao governador-geral de Moçambique logo em 26 de Junho de 1916 pelo comandante das forças britânicas na África oriental, Jan Smuts. O general solicita uma autorização para recrutar indígenas destinados ao batalhão africano de Sua Majestade. Não é normal fazer um pedido destes à autoridade local, sem passar pelo governo central. 

Jan Smuts

A desenvoltura do militar sul-africano revela alguma desconsideração pelo governo de Lisboa. O governador-geral não quer responder sem consultar a metrópole e demora-o.

O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico percebe que tem mesmo de passar por Lisboa para obter uma decisão em Lourenço Marques. E dá instruções ao embaixador britânico para apresentar um pedido formal ao Governo da República portuguesa. Por desorganização ou por malícia, o Governo português deixa o embaixador à espera de uma resposta. Em 12 de Julho, o embaixador insiste.

O MNE português, Norton de Matos, ainda o faz esperar mais duas semanas, mas acaba por responder favoravelmente:

O Governo português nenhum inconveniente vê em que as forças do comando do general Smuts sejam reforçadas com tropas recrutadas na nossa colónia de Moçambique, antes muito deseja prestar mais este concurso para o fim comum que os dois Governos têm em vista. Neste sentido, foram dadas instruções telegráficas ao governador-geral de Moçambique para proporcionar com a maior urgência ao general Smuts contingentes de tropas indígenas recrutadas no nosso território”.

Norton de Matos

Mas o Governo britânico não confia na competência do recrutamento português. Em 21 de Agosto, o embaixador volta a escrever ao MNE:

Recebi instruções para explicar ao Governo da República que a proposta é que funcionários britânicos de recrutamento sejam autorizados a entrar em território português e sejam os próprios a seleccionar recrutas para o general Smuts (…). Honro-me em pedir que V. Exª tenha a bondade de recomendar uma consideração rápida e favorável desta proposta”.

Finalmente, em 26 de Setembro, o embaixador conforma-se com uma solução de compromisso: não serão os ingleses a recrutar, mas poderão estar presentes ao recrutamento feito por oficiais portugueses e, entende-se, poderão superintender o trabalho dos colegas portugueses. 

O importante é que o batalhão africano de Sua Majestade irá receber os recrutas que deseja, na quantidade que encomendou às autoridades coloniais portuguesas. O Governo britânico, longe de ficar satisfeito, faz novos pedidos. Logo dez dias depois, diz que a guerra vai durar mais tempo do que estava previsto e que as forças aliadas vão precisar de mais recrutas indígenas do que inicialmente se supunha. Quer recrutá-los no distrito moçambicano de Gaza e pressiona o Governo português a dar-lhe luz verde.

Nos meses seguintes muito mais vai estar em jogo. Os ingleses já não discutem apenas quem recruta em Moçambique e querem ser eles a administrar os territórios que forem arrebatados ao inimigo. Depois, chegarão mesmo ao ponto de querer aproveitar as circunstâncias da guerra para pôr uma entidade privada a recrutar em Moçambique. E, a pretexto das necessidades da guerra, procuram servir as conveniências da mineração do ouro na África do Sul.

Em 8 de Maio de 1917, o ministro das Colónias português manifesta ao seu colega dos Negócios Estrangeiros a preocupação que lhe suscitam as movimentações da “Witwatersrand Native Labour Association” no sentido de “recrutar indígenas no distrito de Quelimane”. A tentativa dessa empresa que serve a exploração do ouro sul-africano é, segundo Ernesto Vilhena, “muitíssimo inconveniente”. 

O ministro das Colónias observa que as “exigências de braços para as numerosas plantações e empreendimentos industriais aí existentes [em Quelimane] são pesadíssimas”, a ponto de os fazendeiros portugueses irem fazer o seu recrutamento noutros distritos e mesmo no “Niassa inglês” – clandestinamente, supõe-se.


Para aliviar a pressão dos recrutadores das minas, a quem não consegue impor-se, Vilhena argumenta que das explorações agrícolas do distrito “a Metrópole e os aliados tiram enormes quantidades de açúcar, além de oleaginosas, sisal, etc.” 

E acrescenta uma outra, não menor, preocupação: “Temos o Barué sublevado e inícios de rebelião em pontos afastados do distrito de Tete, parecendo que estes factos se originam em parte na requisição intensiva de carregadores (impossível de evitar) dessas regiões para a nossa expedição militar”. Por isso, conclui: “convém não facilitar o alastramento da rebelião ao distrito de Quelimane”.

Mas não só a companhia britânica tem o à-vontade de querer recrutar em Moçambique sem consentimento da autoridade colonial portuguesa como, inversamente, as autoridades militares britânicas dão instruções a uma companhia portuguesa, a Companhia do Niassa, e queixam-se ao Governo de Lisboa quando essas instruções não são prontamente acatadas.

Assim, em 3 de Janeiro de 1918, a Legação de Inglaterra protesta junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros porque “o general Van der Venter não conseguiu obter a cooperação leal dos funcionários da Companhia do Niassa nas suas operações a partir de Porto Amélia” e solicita “que o Governo português imediatamente envie directivas à Companhia no sentido de conceder ao general Van der Venter as seguintes facilidades que ele pretende:

- O completo controlo de todos os assuntos relacionados com o movimento de tropas e armazéns em Porto Amélia e com a gestão e contratação de embarcações.
- O controlo da base e das linhas de comunicação com o interior, em combinação com as autoridades locais portuguesas.
- A colaboração dos funcionários portugueses na contratação de veículos e no recrutamento de mão de obra”.

Em tom magnânimo, ainda acrescenta que “o Governo de Sua Majestade consideraria a possibilidade de remunerar os funcionários pelos seus serviços”. E sublinha que “o Governo de Sua Majestade atribui além disso importância a que o efectivo recrutamento e pagamento de carregadores, etc., seja feito pelas autoridades britânicas”, deixando transparecer, mais uma vez, a sua descrença na competência dos recrutadores portugueses.

Três dias depois, o diplomata britânico acreditado em Lisboa passa das exigências sobre a Companhia do Niassa para a reivindicação de uma autoridade completa sobre as forças militares portuguesas no distrito da Niassalândia. Utiliza para tanto o descalabro dessas forças no teatro de guerra. 

Com efeito, o general alemão Paul Lettow-Vorbeck tem vindo a obter uma série de sucessos, praticamente sem encontrar resistência portuguesa, que levam o diplomata a enviar ao Ministério dos Negócios Estrangeiros português uma nota implacável, afirmando: “A informação recebida da África Oriental Portuguesa pelo Governo de Sua Majestade mostra que há aí um estado de coisas muito sério e que a presente situação indica a possibilidade de um grave desastre envolvendo pesadas perdas de homens e material”.

À direita: General Paul Lettow-Vorbeck / Créditos: German Federal Archives

Lança depois o remoque: “Parece que as forças alemãs que entraram em território português têm-se mantido desde então graças a mantimentos, armas e munições capturados em vários postos isolados que deveriam ter sido desmantelados ou então defendidos energicamente. Chomba está agora ameaçada, tal como Mocímboa da Praia”. Daí resulta, diz mais adiante, que “há um risco sério para o prestígio de Portugal em África caso as tropas portuguesas se mostrem incapazes de resistir às forças alemãs comparativamente mais pequenas que lhes opõem”.

Com tudo isto, o diplomata pode fundamentar a conclusão que lhe interessa: “é fundamental que todas as forças portuguesas da Niassalândia sejam colocadas sob as ordens do general Van der Venter em tudo o que diga respeito a operações militares”. O diplomata manifesta disponibilidade para um acordo formal, mas diz que, “considerando a urgência do caso, a expedição das ordens desejadas pelo meu Governo não pode aguardar a assinatura do mesmo”. Ou seja, com ou sem anuência de Lisboa, as forças portuguesas irão ser colocadas perante injunções categóricas para obedecer ao comando britânico da África oriental.

No dia seguinte, 7 de Janeiro de 1918, o ministro das Colónias, envia ao governador-geral de Moçambique um telegrama que mostra ter sido aceite sem restrições o ultimato inglês.

Aí afirma, nomeadamente:

“Primeiro – Os assuntos referentes ao movimento de tropas e depósitos em Porto Amélia e ao uso e aluguer de embarcações indígenas ficarão sob a superintendência completa do comandante das forças inglesas.

Segundo – A superintendência da base de Porto Amélia e das linhas de comunicação desse porto para o interior será exercida em conjunto pela autoridade local e pelo general comandante das forças inglesas.

Terceiro - Os funcionários portugueses incluindo os empregados da Companhia do Niassa prestarão o seu auxílio no que respeita ao aluguer de emabarcações indígenas e efectuarão o recrutamento de trabalhadores para as forças inglesas, sem prejuízo da satisfação de necessidades análogas das forças portuguesas.

Quarto – O pagamento de carregadores e assalariados indígenas ao serviço das tropas inglesas poderá ser feito directamente pelas autoridades inglesas as quais também directamente poderão tratar do recrutamento dos carregadores necessários aos vários serviços dos contingentes militares em operações contra os alemães. Neste último assunto todo o auxílio deve ser prestado pelas autoridades, funcionários e empregados portugueses. É urgente transmitir estas resoluções ao comando da expedição e ao governo da Companhia do Niassa
”.

Dois meses depois, virá ainda uma nova intimação inglesa para ser autorizado o recrutamento em Moçambique, com uma definição tão vaga dos números pretendidos e da área visada que equivale à reclamação de um verdadeiro cheque em branco. 

O novo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sidónio Pais, apesar da sua injustificada reputação de germanófilo, confirma a recepção do pedido para “recrutamento na África Oriental portuguesa por oficiais britânicos de indígenas para um corpo dos “King’s African Rifles” que o Governo de sua Majestade Britânica destina ao teatro oriental da guerra, queixa-se da forma vaga do pedido, mas logo acrescenta: 
Não quero deixar de responder prontamente ao pedido apresentado por V. Exa. dizendo que, em princípio, o Governo da República lhe dá desde já o seu assentimento, nos limites impostos pelas necessidades impreteríveis de Moçambique e que, mediante a adopção de uma fórmula que ressalve os justos melindres da soberania nacional, terei muita satisfação em que o território português contribua para a formação do contingente dos “King’s African Rifles”.