RÃO KYAO por João Carlos Callixto

31 Dez 1984 - "Canção da Manhã"

Não sendo o jazz um género musical com a mesma exposição mediática que outros no âmbito das indústrias audiovisuais, é de assinalar que o nome e parte do trabalho de Rão Kyao sejam conhecidos da generalidade dos portugueses – muito por “culpa” do sucesso dos discos que editou na década de 1980 e também na de 1990. O ano de 2021 assinala, no entanto, cinquenta anos desde o primeiro disco por si gravado, ainda em grupo. Estávamos no início da década de 1970 e o percurso de João Maria Centeno Gorjão Jorge (o nome civil de Rão Kyao) levara-o aos estudos no Colégio Militar e à aprendizagem de saxofone com Victor Santos (fundador do Thilo’s Combo, um dos conjuntos musicais mais requisitados na década de 1960).

Com uma breve passagem pelo Bossa Jazz 3, não chegando no entanto a gravar o EP do conjunto, Rão é na mesma altura um dos membros do noneto Sindicato. Este grupo, formado em 1969 e que passaria pelo histórico programa televisivo “Zip-Zip” ainda nesse ano, edita em 1971 o seu único disco – um single com o original “Smile” e uma versão bem particular de “Blue Suede Shoes” no lado B. Participa logo nos primeiros Festivais de Jazz de Cascais, como membro dos grupos Bridge e Status, mas nenhum deles chega a gravar. Seria no âmbito do acompanhamento de poesia que Rão volta a surgir em disco: no final do ano de 1971, no álbum “Palavras Ditas”, de Mário Viegas, está ao lado de Paulo Gil, José Calvário e José Niza numa improvisação a partir do poema “Sob o Trópico de Câncer”, de Vinicius de Moraes. Em 1974, é ele e o seu saxofone que acompanham a poesia e a voz do poeta nortenho Luís Veiga Leitão no EP “Noite de Pedra”, também produzido por Niza e editado pela Orfeu.

Seria apenas após o 25 de Abril de 1974 que Rão Kyao se estreia em nome próprio, mas esta não foi uma estreia qualquer. O álbum “Malpertuis”, publicado pela Valentim de Carvalho em 1976, marca na realidade o primeiro momento em longa-duração de um músico português na área do jazz – depois de diversas experiências ainda desde os tempos dos discos de 78 rotações. A produção ficou a cargo de Paulo Gil e para além dos saxofones e flautas de Rão marcavam ainda presença no disco músicos como José Eduardo, João Heitor, António Pinho Vargas e Fernando Girão. No mesmo ano de 1976, o nosso músico está também em gravações do angolano Jair, de Paco Bandeira, de Paulo de Carvalho, de Girão ou do grupo Saga.

Com o trabalho de sessão (destacando-se nomes como os de José Afonso, Jorge Palma, Fernando Tordo, Fausto ou a Banda do Casaco) a marcar uma forte componente da sua actividade, sucedem-se ainda no final dos anos 70 dois novos álbuns a solo: “Bambú”, em 1977, e “Goa”, em 1979. Rão Kyao muda-se então para a companhia discográfica Nova, recém-formada, e nela publica um álbum gravado ao vivo em Cascais e o quarto álbum de estúdio, “Ritual” (1982). Com a sua música cada vez mais marcada pelas impressões obtidas na Índia, pode ter sido uma surpresa para muitos a edição em 1983 de “Fado Bailado”. Produzido por Luís Pedro Fonseca, um dos companheiros musicais de Rão, este álbum abordou o universo do fado através da “voz” do seu saxofone, acompanhada pela guitarra portuguesa de António Chainho. O enorme sucesso deste trabalho, editado na PolyGram, torna-se também responsável pela reconciliação com o fado por parte de algum público que tinha olhado o género de lado na sequência do 25 de Abril.

A “Canção da Manhã” deste “Gramofone pertence ao álbum "Estrada da Luz", editado no final do ano de 1984 e que trazia também o sucesso "Tróia". As imagens a que aqui assistimos são de um programa especial de fim-de-ano e nelas Rão Kyao passeia-se livremente pelo cenário conduzindo a sua flauta “mágica”. Tão mágica e tão livre que continua a dar a mão a talentos firmados nos últimos vinte anos - como Paulo Ribeiro, Ela Vaz, Ricardo Ribeiro ou o grupo Senza – enquanto que continua a construir uma obra em nome próprio sempre marcada pela espiritualidade e pela emoção.