Hillary para a História

Se Hillary Clinton chegar à Presidência dos Estados Unidos da América no dia 8 de novembro, atingirá o cume de uma carreira marcada por feitos inéditos no seu país. Antes dela, nenhuma primeira-dama se havia candidatado a um lugar público e a ser eleita. Antes dela, nenhuma mulher conseguiu o lugar de senador por Nova Iorque. Antes dela, nenhuma mulher teve possibilidades reais de ser a número um da Casa Branca, onde ainda se decide boa parte do destino do mundo.

1. Entra republicana, sai democrata
2. Hillary e Bill, dupla de ouro
3. Primeira-dama
4. O furacão Lewinski
5. Voo para fora do ninho
6. O primeiro ataque ao topo do mundo
7. À segunda será de vez?

Filha de um lar abastado, onde o negócio têxtil do pai Rodham garantia conforto e segurança económica, Hillary Diane nasceu em Chicago em 1947. Uma autêntica baby boomer, fruto do sucesso de uns Estados Unidos gloriosamente vencedores da II Grande Guerra. Da windy city, a familia Rodham mudou-se para Park Ridge, nos subúrbios de Chicago, e foi lá que Hillary foi criada e educada, sempre em escolas públicas.

Aluna brilhante desde muito cedo, rapidamente se fez uma líder estudantil, durante uma adolescência que começou por ser orientada pelos ideais republicanos, herdados dos progenitores, mais tarde substituídos pela visão democrata da sociedade. Mas a ambição sempre andou de mãos dadas com a jovem, de quem se relata, ainda hoje, um episódio em que enviou uma carta à NASA, manifestando a vontade de se tornar astronauta. A resposta foi lacónica: "Mulheres não podem ser astronautas". Ficou uma boa história para contar e, mais importante, a predisposição para lutar pela igualdade de direitos que guiou boa parte da sua vida pública nos anos subsequentes.



Como elemento júnior do Partido Republicano, Hillary chegou a participar ativamente na campanha eleitoral pelo conservador Barry Goldwater, derrotado nas presidenciais de 1964 por Lyndon Johnson - esse mesmo, o que ocupou o lugar de John F. Kennedy, assassinado em Dallas no final do ano anterior. No entanto, o fervor republicano de Hillary Rodham não resistiu à passagem para a idade adulta.
Entra republicana, sai democrata
A entrada na Universidade de Wellesley, em 1965, foi o ponto de viragem. Wellesley é uma universidade privada de grande prestígio, onde só estudam mulheres, cujos métodos de ensino são orientados por princípios liberais e humanistas. Neste novo ambiente, influenciada pelos ventos de revolta que sopravam sobre os Estados Unidos (contestação à guerra no Vietname, Movimento dos Direitos Civis) e pelos assassinatos de Malcom X (1965), Robert. F. Kennedy e Martin Luther King (ambos em 1968), Hillary Rodham filiou-se no Partido Democrático.

Depois do bacharelato em Ciência Política, Hillary foi estudar Direito em Yale, onde aconteceram mais dois momentos cruciais para o seu futuro: tornou-se discípula de Marian Wright Edelman, advogada ativista pelos direitos civis, principalmente os das crianças, e conheceu Bill Clinton, com quem viria a casar anos mais tarde.

Num percurso sempre ascendente, amparado por Edelman, a mentora, a jovem Rodham iniciou a especialização em Direito da Família, com foco especial nas crianças. Durante a sua passagem por Yale, estagiou em escritórios de advogados de nomeada, prestou apoio legal pro bono aos mais desfavorecidos e aprofundou as suas ligações ao Partido Democrático. Isso valeu-lhe, em 1970, a primeira missão mais orientada para os centros do poder em Washington, quando trabalhou sob a alçada do senador Walter Mondale, que mais tarde seria vice-presidente dos Estados Unidos, na Administração de Jimmy Carter.
Hillary e Bill, dupla de ouro


Hillary Rodham conheceu Bill Clinton em Yale, onde se envolveram romanticamente e travaram batalhas políticas comuns. Cedo se tornaram numa dupla inseparável, com Bill a pôr em pausa os seus planos pessoais, de modo a acompanhar Hillary nas crescentes exigências da carreira da namorada, que começava a acelerar a grande velocidade. No entanto, em 1973, depois de ambos se formarem em Direito, aconteceu a separação. Clinton regressou ao seu Arkansas natal, enquanto Hillary foi para o Massachusetts trabalhar com Marian Wright Edelman no Children’s Defense Fund, uma organização de defesa dos direitos das crianças recentemente criada por Edelman. Em 1974, Hillary fez parte da Comissão de Inquérito ao escândalo do Watergate, que envolvia o então Presidente Nixon e conduziu ao seu afastamento em desgraça.

Terminada essa missão, Hillary Rodham deu o que muitos consideram o passo decisivo para a sua vida futura: rumou ao Arkansas, para se juntar definitivamente a Bill Clinton, com quem se casou em 1975. A vida profissional não foi descurada pelo matrimónio com o – também ele – político em ascensão meteórica. À docência na Universidade do Arkansas juntou pouco mais tarde o trabalho na famosa e prestigiadíssima sociedade de advogados Rose Law Firm, da qual viria a tornar-se co-proprietária em 1979.
Primeira-dama
Clinton foi eleito governador do Estado do Arkansas em 1979, falhou a reeleição em 1981, mas regressou ao cargo em 1983, de onde só saiu para ocupar a Casa Branca, nove anos mais tarde. Durante esse período, Hillary cimentou a reputação de primeira-dama atípica. Ao contrário do que era tradição, não assumia um papel público secundário, limitado a “embelezar” o mandato do marido governador. Mergulhada numa intensa atividade académica, política e jurídica, Hillary não se furtava à ribalta. Foi nomeada Mulher do Ano do Arkansas em 1983, Jovem Mãe do Ano do Arkansas em 1984 (a única filha do casal, Chelsea, nascera em 1980) e figurou duas vezes na lista anual dos 100 advogados mais influentes dos Estados Unidos. Aliás, antes de Bill se tornar Presidente do país, em 1992, Hillary foi a principal fonte de rendimentos do lar Clinton.

Por esta altura, começaram também as polémicas a envolver um, o outro, ou ambos os elementos do casal Clinton. Durante a campanha para a Presidência dos Estados Unidos, saltou para as primeiras páginas dos media um escândalo sobre a infidelidade conjugal de Bill alegadamente mantida ao longo de 12 anos com Gennifer Flowers. A ida dos Clinton ao célebre programa de informação 60 Minutes e, principalmente, o desempenho de Hillary em defesa do marido, marcaram pontos importantes no que seria a marcha de Bill para Washington, para dirigir o “país mais importante do mundo”, como os americanos gostam de dizer.

A inevitável exposição pública do casal Clinton, agora “no centro do mundo”, alimentou páginas e mais páginas dedicadas ao que se dizia ser a grande ambição de Hillary a voos não limitados ao papel de primeira-dama. Essas suposições não foram desmentidas, antes pelo contrário: é famosa uma declaração de Bill Clinton repetida diversas vezes durante a campanha presidencial, quando caracterizou a sua corrida à Casa Branca como um twofer (“dois em um”, em tradução livre), o que dava a perceber a importância política que tinha reservada para a sua mulher.

Certo é que Hillary trazia consigo um currículo profissional inigualado por qualquer anterior esposa de um Presidente dos Estados Unidos e, chegada à Casa Branca, instalou o seu próprio gabinete, junto à Sala Oval, e passou a chefiar, por nomeação do marido, uma comissão para a reforma do Sistema de Segurança Social, um dos mais importantes pontos da agenda legislativa do Presidente. No entanto, essa missão acabou por ser esvaziada pelo Congresso, que recusou as recomendações do grupo de trabalho por ela chefiado.

A exploração política, por parte da oposição, da forma peculiar como Hillary Clinton exerceu o seu papel de primeira-dama – um “cargo” não executivo e não sujeito a eleição, recorde-se – levou inclusivamente a que o Congresso voltasse a ser maioritariamente Republicano, em 1994. Para não prejudicar a recandidatura presidencial do marido em 1996, Hillary foi obrigada a “apagar-se” e a assumir uma postura mais tradicional. Regressou às causas sociais.
O furacão Lewinski


A controvérsia fazia visitas pontuais aos Clinton e a Hillary em particular: por exemplo, as investigações nos anos 90 ao caso Whitewater, que remontava ainda aos tempos no Arkansas, bem como um outro, também no final dos anos 70, em que um pequeno investimento de Hillary no mercado de futuros de gado deu um espetacular rendimento em poucos meses. Mais recente, o caso Travelgate revelaria autoritarismo e arbitrariedade de Hillary, já na Casa Branca. No entanto, mesmo sem remover completamente as suspeitas, o casal presidencial foi passando relativamente incólume pelos problemas.

Até que surgiu um furacão chamado Monica Lewinski. O relacionamento sexual de Bill com a estagiária da Casa Branca, que o Presidente começou por negar e depois foi obrigado a admitir, devido às provas recolhidas pelo procurador Kenneth Starr, esteve a um passo de causar a raríssima destituição de um Presidente dos Estados Unidos da América, por perjúrio. A Câmara dos Representantes votou a favor do afastamento de Bill Clinton, mas o Senado salvou-o. Durante esta odisseia, Hillary manteve-se publicamente ao lado do marido.
Voo para fora do ninho
Em 1999, já nos últimos tempos do conturbado segundo mandato de Bill Clinton na Casa Branca, Hillary recentrou-se e procurou o seu protagonismo “fora do ninho” presidencial. E voltou a fazer História, duplamente. Nunca uma primeira-dama concorrera a um cargo público – neste caso, ao Senado, por Nova Iorque - eleição que ganhou por larga margem, convertendo-se na primeira mulher a consegui-lo na Big Apple. Assumiu o cargo em janeiro de 2001, iniciando um mandato durante o qual pugnou prioritariamente pelas suas causas preferidas: a reforma do sistema de Segurança Social e os direitos das crianças.

O ataque às Torres Gémeas, em setembro desse ano, levou-a a apoiar a invasão do Afeganistão lançada pelo Presidente George W. Bush, mas rapidamente se distanciou da posterior ofensiva contra o Iraque, tornando-se numa acérrima crítica da política externa conduzida pela Administração norte-americana durante os anos seguintes. Em 2006, voltou a ser facilmente eleita para o Senado e, um ano mais tarde, propôs-se entrar novamente na História dos Estados Unidos.
O primeiro ataque ao topo do mundo
Em 2007, Hillary Clinton declarou-se candidata a ser a nomeada do Partido Democrático na corrida à Presidência dos Estados Unidos, nas eleições que ocorreriam no ano seguinte. A empreitada começou aos soluços, mas foi ganhando vigor, com vitórias em alguns estados importantes, até que esbarrou na caminhada imparável de Barack Obama. As aspirações de Hillary ao lugar máximo tiveram de ser reprogramadas, mas o novo Presidente, também ele a fazer História no país ao converter-se no primeiro negro a chegar à Chefia do Estado, não a deixou cair. O convite para Secretária de Estado, o segundo lugar da Administração americana em termos de importância (equivalente ao de ministro dos Negócios Estrangeiros) foi aceite por Hillary.

A nova chefe da diplomacia norte-americana desempenhou um mandato que lhe granjeou muitos elogios, tendo-lhe sido creditada a responsabilidade pela melhoria das relações externas do país, face aos tempos republicanos de George W. Bush. As sempre sensíveis relações com a Rússia, mas também as crises no Egipto, na Líbia e, mais tarde, na Síria, a que se juntavam os persistentes dossiers afegão e iraquiano, obrigavam Hillary a trabalho intenso. Para o exterior, a concertação de posições entre Presidente e secretária de Estado transmitiam uma sensação de sintonia.

Mas uma coisa era incontornável: em 2016, haveria novas eleições presidenciais nos Estados Unidos e Obama, cumpridos dois mandatos, já não seria uma possibilidade. Hillary tinha planos.
À segunda será de vez?
Clinton renunciou ao cargo de Secretária de Estado em 2013 e, pela primeira vez em muitos anos, provou a condição de cidadão particular sem ligação a cargos públicos. Voltou a dedicar-se à sua causa de sempre, os direitos das crianças, em nome da Fundação com o seu nome, o do seu marido e o da sua filha. Deu conferências e trabalhou nas suas memórias, até que, em 2015, anunciou a intenção de concorrer uma vez mais à Presidência dos Estados Unidos.



Apesar de ser imediatamente considerada como favorita a obter a nomeação do Partido Democrático para a candidatura à Casa Branca, Hillary enfrentou a disputa inesperadamente forte de Bernie Sanders, um senador que, adotando um discurso mais populista, conseguiu captar a insatisfação do eleitorado relativamente à excessiva influência do grande capital, das grandes empresas e das famílias mais poderosas no desenho das políticas norte-americanas. Clinton, apoiada na experiência governativa acumulada durante a passagem pela Administração Obama, professava um programa mais próximo dos objetivos tradicionais do Partido Democrático, advogando o aumento da tributação sobre os mais ricos, controlo mais apertado do mercado financeiro de Wall Street, a subida do ordenado mínimo, a reforma das políticas de imigração, uma presença forte dos Estados Unidos no Mundo.

Em 2015, logo no início da nova etapa, a controvérsia abeirou-se mais uma vez de Clinton, agora pela via de uma investigação aberta pelo FBI ao procedimento incauto e possivelmente ilegal de Hillary que, enquanto membro do Governo de Obama, utilizara um endereço de e-mail privado para tratar de assuntos de Estado, pondo em causa a Segurança Nacional. Terminada a investigação, o FBI concluiu não haver matéria para procedimento criminal, mas não deixou de sublinhar o comportamento “extremamente descuidado” da então secretária de Estado. Repete-se uma história já familiar: Hillary fica algo “chamuscada” junto da opinião pública, mas evita mais uma bala e mantém as aspirações intactas.

Com a forte concorrência de Sanders a dificultar-lhe os propósitos, Hillary Clinton só na reta final das primárias garantiu a nomeação democrata, tornando-se na primeira mulher com reais hipóteses de ascender à Presidência dos Estados Unidos.



Do lado Republicano, cedo se percebeu que o adversário seria o magnata do imobiliário Donald Trump, cuja visão radical, polémica e truculenta da política começou por entusiasmar e, depois, embaraçar as elites do partido do elefante. Demasiado tarde, porque cerca de metade do eleitorado, segundo as sondagens, já estava com Trump.

Com os dois lados definidos em termos de candidatos, começou uma campanha eleitoral marcada por acusações mútuas entre Hillary e Trump, algumas de nível bastante baixo, com revelações polémicas a polvilhar o caminho de ambos. Por exemplo, as dúvidas sobre o estado de saúde de Clinton ou as gravações com declarações que revelavam a faceta sexista, assediadora e abusiva de Donald. Já nos últimos dias de campanha, o caso dos e-mails ressurgiu para apoquentar Hillary, que tinha conseguido cavar uma vantagem significativa nas sondagens, graças às revelações sobre o multimilionário Trump. Agora, a poucas horas do ato eleitoral, estão de novo em empate técnico.

Na próxima terça-feira, a nação norte-americana decidirá se Hillary Clinton vai ou não entrar na História do país como o 45.º Presidente, primeira mulher.