Regime sírio "torturou e executou" pelo menos sete mil prisioneiros

por Andreia Martins - RTP
Ammar Abdullah - Reuters

Um relatório divulgado esta quarta-feira pela Human Rights Watch revela o desfecho de nove meses de investigação sobre os centros de detenção controlados pelo Governo de Bashar al-Assad. Com base na análise de 28 mil fotografias, o documento procura revelar as histórias pessoais com recurso a entrevistas de familiares e testemunhas.

A organização de defesa dos Direitos Humanos divulgou esta quarta-feira, em Moscovo, um relatório de 86 páginas em que se propõe comprovar a autenticidade das fotografias que começaram a ser publicadas em agosto de 2013.

Se os mortos pudessem falar: assassínios em massa e tortura nos centros de detenção da Síria é o resultado de nove meses de investigação que conseguiu, para já, identificar 19 das vítimas nas fotografias tiradas por “Caesar”, um desertor do Governo sírio que se dedicou a retratar as atrocidades. 



Para além da identificação das vítimas, o relatório completo divulga o conteúdo de entrevistas com família e amigos de pessoas detidas e ainda 37 antigos prisioneiros, que garantem ter assistido a algumas das cenas que as fotografias retratam. Contém ainda quatro entrevistas com desertores do Governo de Bashar al-Assad, antigos trabalhadores em centros de detenção ou hospitais militares, local onde grande parte das fotografias foram tiradas.

“Analisamos meticulosamente dezenas de histórias e estamos seguros de que as fotografias apresentam evidências autênticas – e condenatórias – de crimes contra a humanidade cometidos na Síria”, refere Nadim Houry, responsável pela zona do Médio Oriente na organização pelos direitos humanos.

A Human Rights Watch critica duramente a posição de alguns países, nomeadamente a Rússia, que classifica como “o maior apoiante do regime sírio”. O comunicado diz que a prioridade deve ser “o destino dos milhares de detidos” pelas forças de Bashar al-Assad.

“Os países empenhados nesta questão devem exigir o acesso imediato a todos os centros de detenção do Governo sírio”, acrescenta o relatório.
O testemunho de um médico

Os vários testemunhos impressionantes reunidos neste relatório incluem uma entrevista realizada a Sami Sharif, um estudante de 27 anos que estava no quinto ano de Medicina quando a guerra civil começou na Síria. Nos meses dos primeiros protestos, decidiu criar com amigos um grupo secreto que inicialmente tratava manifestantes feridos pela polícia estatal, chegando mesmo a improvisar hospitais clandestinos em Damasco em 2012.

O sobrevivente conta que esteve preso durante um mês, numa cela partilhada com cerca de 300 pessoas. A falta de espaço fazia com que os detidos fossem obrigados a sentarem-se por turnos e as condições sanitárias e de insalubridade eram ainda mais chocantes aos olhos de um estudante de medicina.

"A diarreia era a principal causa de morte na prisão. Todo os prisioneiros com diarreia morriam no espaço de três, quatro ou cinco dias", acrescenta.

Nas celas, morriam pessoas todos os dias e muitas vezes, os guardas deixavam um corpo a decompor-se por várias horas.

"Fui torturado. Fui espancado com uma mangueira de plástico sólido enquanto estava pendurado pelas mãos", conta o estudante de medicina que vive atualmente em Berlim, onde está a terminar os estudos.

Apesar das várias torturas, a sua situação não era, de longe, uma das mais graves. Sami conta que viu outros prisioneiros a serem eletrocutados ao ponto de partirem a coluna vertebral e outros que eram amarrados a lances de escadas de forma a destruir os nervos dos ombros do prisioneiro. Os gritos de tortura eram constantes e raramente deixavam os outros prisioneiros dormir.

Ao fim de um mês e um dia, a família e amigos com contactos conseguiram pagar a saída de Sami. Quando saiu do centro de detenção estava muito magro, com sarna, bronquite e problemas num joelho. Saiu também com novas intenções quanto à sua carreira.

No testemunho dado à Human Rights Watch, o futuro médico que estudava para ser cirurgião quer agora seguir a carreira de psiquiatra para curar as feridas da guerra no seu país de origem: "Tantas crianças que viram tanto sangue, tantos detidos, tantas pessoas que experienciaram a guerra. Vão existir tantos problemas mentais".
Fotografias pertencem ao Estado sírio
As fotografias que mostram pelo menos 6.786 cadáveres são da autoria de um desertor do Governo que abandonou a Síria em 2013 e fez o contrabando de mais de 50 mil imagens durante quase um ano, entregando os ficheiros ao Movimento Nacional Sírio, uma organização opositora ao regime que por sua vez entregou as fotografias à Human Rights WatchAs fotografias foram tiradas entre maio de 2011 e agosto de 2013 em cinco diferentes centros de detenção, todos localizados na cidade de Damasco.

Conhecido pelo nome de código “Caesar”, trabalhou como fotógrafo forense para a polícia militar, num aparente esforço por parte das forças de segurança sírias em manter um registo de todos os que morreram em centros de detenção desde 2011. 

Mas o objetivo destas fotografias não é totalmente claro. Entrevistado por investigadores e jornalistas, "Caesar" já admitiu que não conhecia ao certo as razões para a criação deste arquivo: “O regime documenta tudo para que nada fique esquecido”.

A organização divide os milhares de ficheiros em três diferentes categorias ao longo do relatório: as fotografias em “locais do crime”, onde terão ocorrido “ataques, explosões, assassínios”; um conjunto de fotografias tiradas em morgues de hospitais militares, onde foram registados os corpos de soldados e forças de segurança, identificados como “mártires”; por fim, o maior grupo de fotografias de cadáveres (quase 29 mil), no qual a Human Rights Watch vê documentadas as mortes de pelo menos 6.786 pessoas sob custódia do Governo sírio.
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