Impotência e vergonha

Ele está ali sentado, coberto de pó e de sangue, olhar parado, um olho que mal abre. Fita-nos sentado naquela cadeira laranja, quase sem pestanejar, através das objetivas de repórteres corajosos que tentam mostrar a crueldade da guerra na Síria. Apático, Omran Daqneesh parece ter ficado em estado de choque. Não chora, nem grita. Olha-nos apenas com aquele olhar meigo e assustado de uma criança que sendo tão tenra parece ter a dureza dos heróis de guerra, veteranos na sua experiência.

Omran tem apenas 5 anos, tantos quantos leva o conflito da Síria que já matou mais de 250 mil pessoas desde 2011, grande parte crianças, e que obrigou 11 milhões de pessoas a abandonar as casas e pelo menos 5 milhões a sair de um país infernizado pela guerra e pelo autodenominado Estado Islâmico, um nome pomposo para terroristas cruéis que aproveitam o terror e o pânico que causam para dominar territórios que administram e de onde tiram muitos milhões.

O olhar de Omran confronta-nos com a nossa impotência e a vergonha que sentimos por não poder fazer nada, e por raramente nos importarmos que lá longe, na Síria, morram todos os dias pessoas aos magotes, crianças como Omran que até teve a sorte de sobreviver, milhares de prisioneiros torturados de forma selvagem que acabam por sucumbir à bestialidade dos carcereiros. Mas o olhar de Omran também nos obriga a uma compaixão egoísta. Todos nós olhamos para ele e sentimos pena, não apenas pela imagem imediata que nos agride e que nos mostra como foi, mas pelo que projectamos e imaginamos que poderia ter sido. Ali, naqueles olhar parado, vemos os nossos filhos, os nossos sobrinhos, os nossos netos ou os nossos irmãos mais novos, e pensamos de imediato que podia estar ali um de nós. Vemos ali os nossos, e isso é a parte que mais dói. É por isso que, passada a viralidade próprias das redes sociais ansiosas, havemos de esquecer Omran para que também nos seja permitido acreditar que isto nunca se vai passar cá no burgo mas com um profundo receio de estarmos enganados.

Quando o rosto de Omran se for da nossa vista voltaremos ao sossego do nosso coração. Sem conseguirmos sequer imaginar o que esta criança já sofreu, o que gritou e chorou, o pânico e o terror permanentes em que vive e a falta de esperança que lhe habita o coração. Numa versão romântica e mais poética até podemos imaginar e acreditar que nasceu ao mesmo tempo que os primeiros bombardeamentos que lhe devastaram a cidade-berço que em tempos foi terra de turistas e muitas atrações. Era bom viver em Aleppo num país onde quase nunca foi bom ser habitante. Terá sobrevivido a vários bombardeamentos e provações e um dia havemos de o conhecer mais velho, sobrevivente e a contar uma história de coragem que nos sirva de lição. Talvez até em Aleppo, cidade que entretanto terá recuperado a pujança comercial e industrial dos tempos mais gloriosos. Podemos acreditar em tudo isto e esboçar um leve sorriso. Mas há uma verdade a que nunca podemos fugir: Omran e todas as crianças da Síria estão entregues a elas próprias, e morrem de forma cruel sem que a comunidade internacional intervenha de forma eficaz num conflito insano e devastador. É essa a nossa vergonha.

Somos, todos nós, a opinião pública da comunidade internacional que nunca fez nada para ajudar a colocar um ponto final neste conflito. Porque todos nós vivemos demasiados assustados e aterrorizados com os refugiados em massa, com o terrorismo à porta de casa, com a crise económica que nos pode tirar o conforto ou com os extremismos que parecem estar a preparar-se, há muito tempo, para tomar conta do continente europeu. O medo e o terror paralisaram a nossa capacidade de intervir.

Desejamos apenas, com força, que nunca se passe connosco e com os nossos. A compaixão por Omran não vai durar mais do que o momento em que aparecer a próxima indignação nas redes sociais. Ele, e todas as crianças da Síria, estão entregues a elas próprias.

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