A arte de não se queimar com o fogo

A comunicação do governo face aos incêndios que têm assolado o país é um tratado. Faz lembrar o clássico número de circo pirofágico, em que alguém engole e depois regurgita o fogo em grande estilo.

Quem tenha lido a imprensa, nos últimos dias, nesta altura já não tem dúvidas sobre de quem é a culpa dos fogos. O governo explicou-nos profusamente que a culpa é do vento; é do calor; é dos pirómanos doidos e dos juízes que não os mantêm presos; é das penas que são demasiado leves; é da indústria dos incêndios que dá dinheiro a ganhar a muita gente; é da Europa que não nos ajudou como devia; a culpa é até da extinção dos governos civis – subtil ferroada do secretário de Estado Jorge Gomes ao governo anterior, que foi quem tomou a decisão de os extinguir.

Culpas distribuídas a torto e a direito, então, pelo governo que tudo comentou sobre os incêndios e que logo criou o proverbial grupo de trabalho para – agora sim, não se riam – delinear uma estratégia que acabe de vez com a praga dos fogos em Portugal.

Mas nem tudo o governo comentou, na verdade. Ontem, o Público noticiou que, há dois anos, Ascenso Simões assumiu, na sua tese de mestrado, que se cometeu “um erro grave” ao não se avançar com o Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios que foi proposto pelo Instituto Superior de Agronomia, a seguir aos grandes incêndios de 2003-2005.

Ascenso Simões elogiou o plano e fez um mea culpa, uma vez que era secretário de Estado no ministério da Administração Interna de António Costa, em 2005. O Plano Nacional contra Incêndios foi rejeitado, na altura, por ser considerado “demasiado ambicioso” e porque “não havia dinheiro”, embora os técnicos garantissem que custava o equivalente a meio avião Canadair ou a três quilómetros de auto-estrada. A prioridade acabou por ir para onde sempre vai: para o último elemento da cadeia, o combate aos incêndios, com os seus inúmeros lóbis associados.

O Público perguntou ao gabinete de António Costa o que pensava o primeiro-ministro sobre a tese do seu antigo secretário de Estado e obteve como resposta que “o primeiro-ministro não comenta teses académicas”. Pois. Qualquer bom engolidor de fogo sabe que a mínima distração pode ser a morte do artista.

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