Era para lhe oferecer umas romãs no Natal mas morreu primeiro

Este 2016 tem já tanta falta de gente, que mais parece um final de era, um tempo acabado, um mundo extinto. Depois de Bowie, Prince, Cohen, Breyner e outras tantas pessoas, morreu a minha vizinha do lado.

Já aqui tinha falado nesta senhora. Com mais de 90 anos, conhecemo-nos este verão quando mudei de casa. Partilhávamos o mesmo andar e as conversas de circunstância pelas janelas de cozinha. Era rotina que me descansava, saber que a minha vizinha jantava a horas e estava ali. Quando nos conhecemos, foi pronta:

- Conheço-a muito bem. Nunca vou esquecer a história que contou na rádio da canção que cantava à sua filha, ainda ela não tinha nascido. Leonor, não é? Pois bem sei. E Leãozinho, de Caetano Veloso era a canção.

Pois esta história foi contada há mais de 10 anos, no Programa da Manhã da Antena 1. Na altura, António Macedo convidava-nos a partilhar as canções da nossa vida. E a minha vizinha fixou esta história, provavelmente a mais bonita da minha vida, até porque foi por causa desta canção que a minha filha me reconheceu quando nasceu.

A partir daqui, havia essa cumplicidade de quem morava lado a lado. Gostávamos de nos falar uma vez por dia. A minha vizinha falava-me da família e da companhia que os meus gatos lhe faziam pela janela da varanda, quando se esticavam no sol da tarde.

Contou-me das viagens, dos cruzamentos de oceanos, entre a América do norte e a do sul, as áfricas e os aviões. E das noites de Paris e da Roma dos jardins. E dizia que tinha muitas saudades. De viajar e de ir à Ópera, ao Teatro e às aulas que frequentava na Sorbonne. E de ler, ler sempre e muito.

Vivia sozinha e dizia que não queria ninguém a cuidar dela. Ninguém para lhe dar ordens ou dizer que tinha de mudar a casa de banho, ou os móveis de lugar ou os comprimidos a tomar. Contou-me de uma vida feliz com o seu marido médico, de seus filhos e netos lindos. E até já com bisnetos. Gostava da sua casa, escolhida pela vista ao rio e pelas árvores. Mas, acima de tudo, dizia com natural vaidade, da sorte de ter tido uma vida cheia. Uma mulher de vontade própria. Uma senhora independente.

Um dia, gostava de morrer assim. E poder contar à minha vizinha do lado, uma história de vida feliz e brilhante. Com a mesma singularidade e generosidade com que me contou das suas felicidades.

Tenho pena de não lhe oferecer as romãs que tinha previsto para este Natal. Na minha infância, a romã era o fruto que mais esperava a cada ano. Dizem que a romã é símbolo de uma ligação pura: pequenos frutos unidos por finos fios de intuição e de sonho. Houve alguém que mas deu este ano e também é assim: generosa e singular, sonhadora e intuitiva. Como a minha vizinha.

Na última noite em que a minha vizinha passou em casa, não vi essa luz da cozinha acesa. Estranhei. Mas desejei o melhor. Acabou por morrer. Mas o melhor é também essa recordação das suas últimas duas semanas, com Maria Callas cantando por toda a sua casa, em movimento contínuo pela busca da perfeição. Como a Romã.

Nota final: Para o Natal, vou ouvir Maria Callas e comer romãs. Este ano e todos os anos. A minha vizinha haveria de gostar.

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