1974: Aldo Casas procurou em Portugal a revolução argentina

Veio como jornalista de uma publicação de esquerda, o Avanzada Socialista, mas também para ajudar a consolidar a revolução que o inspirou. Aldo Casas, jornalista e ativista de origem argentina, esteve em Portugal após o 25 de Abril, entre 1974 e 1977. Acompanhou de perto um dos períodos mais conturbados da história portuguesa. Volvidos 42 anos, designa essas vivências como “inesquecíveis”. As convicções, essas, não esmoreceram, muito menos o combate às políticas neoliberais na Europa e América Latina que “golpeiam” as sociedades.

Já a engrenagem do Processo de Reorganização Nacional entrava em marcha, em Buenos Aires, e um grupo de revolucionários argentinos tinha os olhos postos em Portugal, um país que tinha acabado de iniciar a sua revolução.

De um lado, na Argentina, havia militares apoiados pelas forças dos Estados Unidos, a proximidade com o golpe de Pinochet, no Chile (em 1973), do outro, um movimento das Forças Armadas que tinha acabado de derrubar a ditadura.

O fascínio de Aldo Casas e da sua publicação pelo processo revolucionário português trouxe-o a Lisboa, onde passou a residir com a mulher e o filho, então com quatro anos. O filho mais novo acabaria por nascer em Portugal. Mudanças drásticas, irreversíveis, mas sobretudo justificáveis, que são contadas em entrevista à RTP, por ocasião dos 42 anos da Revolução dos Cravos. 




Pode-se dizer que vieram ver como se fazia a revolução. Acabaram por participar e ser agentes ativos da mesma. “De alguma maneira, era passar de uma situação de movimento popular cada vez mais difícil a um movimento de um outro país que, pelo contrário, derrubava um regime autoritário e estava a abrir um caminho para a liberdade e emancipação social. Queríamos que esse conhecimento ajudasse aos nossos próprios esforços”, relembra.
Experiência em Portugal
Chegado a Portugal para cobrir o processo, integrou o Grupo Marxista Revolucionário (GMR), um núcleo muito jovem onde a média de idades estava abaixo dos 20 anos. “Na maioria eram do ensino secundário e estavam no seu último ano de estudos. Outros tinham no máximo 21 ou 22 anos. Eu mesmo não era assim tão velho, tinha pouco mais de 30 anos”, refere o ativista. O GMR resultava de uma junção de Grupos de Acção, anteriores ao 25 de abril de 1974.

O partido era crítico da IV Internacional, de Ernest Mandel, e da sua secção portuguesa (Liga Comunista Internacionalista – LCI). Pela orientação de Aldo Casas, afeto ao partido trotskista argentino PST, a política do grupo tornou-se muito mais estruturada e facilmente aceite pelos jovens que constituíam o grupo. O entusiasmo, a vivacidade das camadas mais jovens inspiravam o ativista: “Quando o povo e os trabalhadores se mobilizam, são capazes de mudar realidades que parecem imutáveis. Abre-se uma possibilidade quase infinita de mudança social”.



Depois desse primeiro período, em que importava refletir e fazer um balanço sobre todas as mudanças que ocorriam, o movimento GMR agregou outros militantes que viriam a constituir o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT). Aldo Casas foi líder de facto desse partido de índole trotskista, apesar da sua condição de membro estrangeiro da organização.

No currículo já trazia a experiência de luta no Partido Revolucionário dos Trabalhadores (que depois viria a ser o PST), na Argentina, nomeadamente durante a insurreição popular de 1969 que ficou conhecida como Cordobazo.

Tinha também estado na Venezuela, em 1973, seguindo o “critério internacionalista” da publicação onde trabalhava. O PRT acabaria por se juntar à LCI já após a partida de Aldo Casas, em 1977. Essa unificação, sob a sigla de PSR (Partido Socialista Revolucionário), dura apenas dois anos, até final de 1979. Mais adiante, o PSR já sem o PRT haveria de se juntar à UDP e à Política XXI para fundar o atual Bloco de Esquerda.

Período de “efervescência”

Aldo Casas esteve em Portugal por poucos anos, mas os suficientes para experienciar de perto alguns momentos decisivos, nomeadamente o 28 de setembro de 1974, o golpe de 11 de março de 1975, o “verão quente” e o 25 de novembro. Participou também na histórica campanha eleitoral de 1976, onde se estreou o PRT.

“Estive em Portugal durante o período de maior efervescência, pode dizer-se”, esclarece. Com uma perspetiva externa mas de muito perto, diz que a experiência em Portugal foi muito significativa. De todos os momentos, escolhe o 11 de março como o que teve maior impacto: “Sem dúvida, o que mais me marcou foi o 11 de março. Foi justamente uma tentativa contra-revolucionária que despertou uma reação muito, muito forte do movimento e marcou uma radicalização inquestionável do processo”, refere.



Nesse momento acreditou mesmo que era possível uma revolução em Portugal. “Podia ver-se claramente que o MFA não era um bloco homogéneo. Coexistiam diversas posições. Sem dúvida que a mobilização popular constituía um ponto de referência que ajudava a radicalizar a posição de um setor dos militares”.

Em retrospetiva, diz que se tratou de um “processo de radicalização e ao mesmo tempo de polarização” de toda a sociedade, que acabaria por se estender por todo o chamado “verão quente” e culminar na revolta dos páraquedistas.
Divergências com o estalinismo
Nascido em Córdoba, na Argentina, em 1944, Aldo Casas deu os primeiros passos na política na Juventude Comunista argentina. Saiu devido às fortes divergências que o opunham ao Partido.

A política “excessivamente moderada” e a resposta “tímida” à repressão comandada pelos Estados Unidos no início da guerra civil dominicana foram detonadores dessa mudança para as ideologias ainda mais à esquerda.



São, no fundo, as mesmas críticas que Aldo faz aos comunistas portugueses, com a diferença que o PCP tinha “muito mais força e maior implantação” do que os comunistas na Argentina. Apesar das virtudes e da consciência anti-capitalista do seus militantes, o PCP foi muitas vezes 'um problema', uma limitação imposta “à criatividade dos trabalhadores”.

“Pude ver muito concretamente que houve todo um período em que essa capacidade de condução [do PCP] se focava em pedir que tudo estivesse calmo”, diz o ativista.
Regresso à Argentina
Saltou de Portugal para Espanha em 1977, quando o franquismo começou a dar os primeiros sinais de fraqueza. Era o início da possibilidade de queda de outro regime nacionalista, que queria acompanhar de perto, enquanto Portugal caminhava para uma maior acalmia. Depois da experiência de quase dois anos em Espanha, voltaria à Argentina por “imperativo moral”, em 1978.



Preparava-se o Campeonato do Mundo de futebol, evento que o regime aproveitou para dissimular a magnitude da repressão. “Foi o momento mais duro da ditadura militar argentina”, relembra. O Processo de Reorganização Nacional, ou simplesmente O Processo, foi o período mais agressivo da ditadura militar argentina.

Entre 1976 e 1983, a repressão e perseguição brutal pelo Estado levou ao desaparecimento de 30 mil pessoas.
Experiência na Polónia
Após o derrube do regime militar e a consolidação da democracia, Aldo Casas voltaria a sair da Argentina, para viver aquela que elege como “a experiência mais estranha”.

Chegou à Polónia no ano decisivo de 1989. Enquanto o Muro caía em Berlim, Aldo Casas estava no país vizinho, a convite de activistas da ala esquerda do sindicato independente Solidarnosc, e enviado pelo partido trotskista argentino Movimento Ao Socialismo (MAS).

Chegou a acreditar que o enfraquecimento de Moscovo poderia trazer oportunidades ao movimento revolucionário: “Apostávamos, nos países de Leste, na luta contra o Governo totalitário da burocracia”, revela à RTP.

Uma crença em vão, tendo em conta o sistema que passou a vigorar em Varsóvia: “Assisti a um processo que era quase o oposto do que aconteceu em Portugal. Nesse momento, enquanto caía o regime comunista, era implantada uma estrutura que tinha definido muito claramente a restauração capitalista e a desmobilização da população”.



“Foi um ano muito intenso. Aprendi muito, mudei muito das minhas ideias inclusive, sobre a realidade do chamado campo socialista. Cheguei à conclusão de que, na verdade, eram sociedades que pouco tinham de socialistas, mesmo que se dissesse o contrário. Os trabalhadores não defendiam o regime e estavam dispostos a acreditar efetivamente que o Ocidente representava um modelo de liberdade e de bem-estar social”, refere.

Descobriu que na Polónia o socialismo era sinónimo de exploração e opressão e que encobria uma realidade nada comunista: “Para eles a palavra socialismo tinha sido usada durante anos apenas para lhes apresentar como ouro o que era carvão”.
Uma crítica ao “não há alternativa”
Depois de tantos anos fora de casa, Aldo Casas ficou na Argentina e sentiu a necessidade de seguir com o seu “compromisso político”, mas dando maior importância ao estudo, à escrita, à reflexão do que se passa na atualidade. Olha para Portugal e Argentina como vítimas de um só monstro.



Passados 42 anos, Portugal “sofre as consequências de um processo que não é próprio de Portugal, mas sim de grande parte do mundo. É um país golpeado pelas políticas de austeridade, levadas a cabo pelo grande centro do capital financeiro internacional”, aponta.

Nesse sentido, é um país “muito parecido com a Argentina”, em que a Constituição pode ter coisas “muito bonitas”, mas onde a relação entre as forças sociais, políticas e financeiras apontam para outros caminhos.



No caso específico da Argentina, diz ter sido “um ensaio da política neoliberal”. O golpe dos anos 70 liquidou quase totalmente o movimento sindical com a brutal repressão. Milhares de “desaparecidos” - com lhes chamou o Governo - brutalmente torturados e executados.

Perdeu-se uma geração de lutadores, desmantelaram-se quase todas as estruturas sociais, a proteção do trabalho. “Criou-se uma realidade material pronta a aplicar as políticas neoliberais, assim que fosse reinstalada a democracia. Dizia-se uma frase de Thatcher que era então muito comum, em Inglaterra: Não há alternativa. Está mal, mas não há alternativa. É isto ou algo pior. Foi isso que se aplicou com resultados devastadores, do ponto de vista social, na América Latina e depois na Europa”, completa Aldo Casas.
Os vários regressos
A experiência inesquecível que viveu em Portugal e as amizades que ficaram dessa época já o trouxeram de volta por várias ocasiões. Nos movimentos em que participou, nomeadamente o GMR e o PRT, não havia pretensões. Eram organizações pequenas, conscientes, uma “geração muito jovem e muito desperta”.




“Certamente que cometemos muitos erros. Mas recordo essa etapa como politicamente criativa em que uma nova geração de jovens quis fazer política revolucionária. Esta viagem, 42 anos depois, acontece porque alguns desses jovens, agora mais velhos, tiveram a gentileza de me convidar”, refere.

Ainda maior é a satisfação quando constata que desses núcleos saiu gente adulta que, de uma forma ou de outra, continuou a ter compromissos políticos e sociais: “Em distintas organizações, em diferentes âmbitos. Alguns políticos, outros culturais. Cresceram acreditando na utopia real de que é possível um mundo diferente”.
A revolução parte das bases
Depois do estudo e da observação, Aldo Casas deixa-nos com algumas conclusões: “Mais do que nunca, estou convencido de que a humanidade é capaz de sair do modelo de sociedade que impôs o capital desde há 300 anos”. Consciente de que o capitalismo mudou, e que a luta exige “novos critérios”.

Para ser válido, o socialismo deve partir de baixo: “Acredito cada vez mais numa ideia original do século XIX: que a libertação dos trabalhadores será feita pelos próprios trabalhadores, ou não acontecerá. Já não confio, como confiava na minha juventude, que a chave do êxito de um projeto de mudança social era construir um partido forte".

 

"Claro que a organização continua a ser importante. Mas o mais importante é despertar essa possibilidade de serem os próprios trabalhadores a tomarem o destino nas suas próprias mãos. Durante muito tempo predominou a concepção de que as ideias corretas deviam ser impostas de cima. Mas devem ser as próprias pessoas a determinar a mudança social”, conclui o ativista.