25 de Abril. Os portugueses que encontraram no exílio a fuga à ditadura

Hoje, sair livremente de Portugal é um direito ao qual a generalidade da população tem acesso. Há 50 anos, porém, as restrições acumulavam-se, começando a ser eliminadas progressivamente apenas após a Revolução dos Cravos. A RTP falou com antigos exilados portugueses que viram na saída do país - muitas vezes complexa e arriscada - a única solução para a fuga à ditadura que lhes roubava a liberdade de dizerem "não" à guerra colonial, ao serviço militar e à vigilância constante.

“Para mim, a escolha foi sempre muito fácil desde o início: o exílio era preferível a ir alistar-me e ir para a guerra em Angola, Guiné, Moçambique, o que fosse na altura”. É com firmeza que Rui Mota, antigo exilado na Holanda, relembra a sua relutância em cumprir o serviço militar nas então colónias portuguesas em África.

A sua saída deu-se em 1966. Tinha 20 anos e a determinação em virar costas ao regime ditatorial de Salazar levou-o a atravessar a fronteira até Londres, onde tentou pedir asilo político. A aventura, porém, começou mal, já que a Inglaterra não reconhecia, na altura, os portugueses refratários ou desertores, que saíam de Portugal por motivos da guerra colonial, justificando-o com o facto de ambos os países serem membros da NATO.

O plano teve, então, de mudar: “Contactei os meus amigos que eram daqui de Portugal, da escola secundária e que já estavam na Holanda. Eles informaram-me que, à partida, o Governo holandês reconhecia os portugueses que fugiam da guerra e dirigi-me para lá”, conta Rui Mota.

Agora com 78 anos, este antigo exilado lembra bem a sensação de recomeçar a vida num lugar estranho, mas também a convicção de que essa era a escolha certa e, acima de tudo, a única possível para si.

“Não fiquei muito angustiado por ficar por tempo indeterminado no estrangeiro. Desde logo porque não queria fazer a tropa e a guerra colonial que estava implícita e, portanto, a escolha era fácil entre ir para África combater por um exército colonial e ficar exilado por tempo indeterminado”, explica.

“Para mim, a escolha foi sempre muito fácil desde o início: o exílio era preferível a ir alistar-me e ir para a guerra em Angola, Guiné, Moçambique, o que fosse na altura. Portanto isso para mim nunca constituiu um grande problema”.

Apesar de nunca saber “quanto tempo é que teria de ficar no exílio - podiam ser meses, anos – (…) estava de alguma forma mentalizado para ficar o tempo que fosse preciso”, conta.

Acabou por ficar, inicialmente, oito anos. A 25 de Abril de 1974, estava a caminho das aulas quando recebeu a notícia: um golpe de Estado tinha deitado abaixo o regime opressivo que há décadas ensombrava Portugal.

Manifestação de apoio aos prisioneiros políticos, Haia, 1972. Fotografia de Rui Mota.
A primeira reação não foi, no entanto, de alívio, mas sim de “uma certa incredibilidade”. “Eu pensei - eu e a maior parte das pessoas que estavam exiladas como eu - que era mais um golpe ou uma tentativa de golpe militar da chamada direita”, recorda Rui Mota.

Houve ali umas horas de expectativa para sabermos se realmente era um golpe militar progressista ou não, e só ao final do dia 25 de Abril é que percebemos que realmente se tratava de um golpe democrático e que, portanto, o governo fascista tinha caído ou estava em vias de cair”.

Depois de várias entrevistas dadas a órgãos de comunicação neerlandeses, foi a hora de pensar em fazer as malas. Rui voltou a Portugal no verão e sentia ainda “uma certa tensão no ar”, pelo que a estadia não durou muito tempo.

“Dado que a situação ainda era muito periclitante e não se sabia muito bem no que é que iam dar aqueles movimentos sociais, e também porque não tinha preparado o meu regresso a curto prazo, não quis arriscar. E, uma vez que já tinha uma situação relativamente estabilizada na Holanda - já lá vivia há oito anos, tinha uma bolsa de estudo, tinha relações sentimentais - optei por ficar lá, terminar o curso primeiro e só depois, mais tarde, regressar”.
“Comecei a ser vigiado”
Para Joaquim Saraiva, o motivo de saída do país foi idêntico: “Eu era completamente contra a guerra colonial e também contra o sistema vigente em Portugal. Só pelo facto de ter algum contacto com alguns amigos meus que eram do [Instituto Superior] Técnico, comecei a ser vigiado”, começa por contar à RTP. O IST, em Lisboa, era então palco de vários movimentos estudantis antifascistas.

“Eu mais três amigos decidimos deixar o país e pedir asilo. Tinha um conhecimento na Suécia e eu ia para Malmo. Essa decisão deveu-se ao sistema vigente, à falta de liberdade de expressão, ao facto de qualquer atividade associativa ser problemática”.

“Quando queríamos conversar um bocado à vontade, tínhamos que nos afastar dos sítios normais, do café… porque havia sempre a desconfiança que houvesse o que se chamava na altura ‘os bufos’, que acabavam por denunciar qualquer conversa que ouvissem contra o sistema”, recorda.

A partida não aconteceu, no entanto, da forma que esperava. No dia 28 de abril de 1970, com 20 anos acabados de fazer, Joaquim acabou por ter de atravessar a fronteira a salto sozinho, já que os seus três companheiros desistiram – um deles na noite da véspera.

“Foi um choque, porque é completamente diferente irmos acompanhados com amigos ou nem que fosse mais um amigo do que ir sozinho para um desconhecido”, confessa.

“Hoje ninguém tem noção que sair de Portugal era muito complicado naquela altura, sem documentação, sem passaporte, sem licença militar. E para quem nunca tinha saído aqui da zona de conforto - eu era da zona de Benfica e pouco mais conhecia do que Lisboa - dar um passo daqueles no escuro… Foi muito difícil, só quem viveu esse período é que poderá contar as dificuldades que eram”.

Manifestação em Copenhaga, 1973. Fotografia de Joaquim Saraiva.
A 2 de maio chegou à Suécia, num comboio que apanhou em França, com um passaporte falso. Ia mentalizado para poder ter de ficar no país nórdico durante meses, anos ou até décadas. Quando lá chegou pediu asilo político mas, tal como aconteceu a Rui Mota em Londres, o pedido foi recusado. A polícia sueca colocou-o, então, na Dinamarca, onde voltou a fazer o pedido, desta vez com sucesso.

“Fui o primeiro português a chegar à cidade onde estava, que era a segunda maior cidade dinamarquesa, Aarhus. Depois começaram a chegar mais portugueses e nós organizámos um comité de apoio aos desertores e desenvolvemos atividades de luta para a favor dos povos das colónias”.

Teve conhecimento do golpe militar em Portugal quando chegou ao trabalho no dia 25 de Abril. “Nesse dia não se consegue imaginar: só se esperava que acabasse o dia de trabalho para me poder encontrar com o resto dos companheiros, para discutirmos e saber mais notícias do que se passava em Portugal”, relembra.

Também à semelhança de Rui Mota, este exilado teve dúvidas quanto ao que se passava. “Aquelas caras, aquela Junta de Salvação Nacional, deixavam-nos um bocado duvidosos porque tínhamos a experiência do que se tinha passado no Chile no ano anterior, com o golpe do Pinochet. Sentíamos a preocupação de saber mais coisas para ver se em Portugal não se iria passar a mesma coisa. Felizmente que não”.

Assim que as notícias se confirmaram, não teve dúvidas. “A decisão sempre esteve tomada de que, assim que fosse possível regressar a Portugal, regressava-se. Era todo o objetivo quase. Foi uma debandada, porque éramos quase todos desertores, refratários que estávamos ali na Dinamarca e estávamos todos ansiosos para, assim que pudéssemos, regressar a Portugal”.

Para Joaquim, esse regresso aconteceu em junho de 1974.
As mulheres exiladas
“Um exílio querido”. É assim que Merita Andrade, agora com 80 anos, classifica a sua saída de Portugal, em 1971. Namorava com “um rapaz que não queria fazer a guerra” e que, por isso, saiu do país. Por amor, Merita seguiu-o.

“Era um exílio, digamos, querido, um exílio ao qual eu aderi por vontade própria”. Como mulher e, portanto, isentada do serviço militar, conseguiu sair mais facilmente. “A saída de Portugal para mim não era difícil. Eu ia no comboio normalmente, como toda a gente - tinha de levar passaporte, mas pronto, íamos de comboio e passávamos as fronteiras normais”, explica.

Foi nesse comboio que chegou a Grenoble, mas todos os anos vinha a Portugal de carro. “Aí era mais complexo, porque trazíamos as coisas escondidas no carro. Vínhamos com livros contra a ditadura. Eu fazia parte de um grupo que não era propriamente o grupo do governo português nesse ponto, e portanto algumas dessas viagens a Portugal foram complexas”, recorda.

Em França, a ideia era ficar pelo tempo que fosse preciso, até que a ditadura acabasse. Quando chegou o 25 de Abril, ia a caminho da escola onde dava aulas de português. À saída de casa encontrou um amigo que a impediu. “Não vais nada para a aula, hoje vamos festejar”, disse ele. “Festejar o quê?”, perguntou Merita.

Sem televisão em casa, não tinha visto ainda as notícias sobre Portugal. Assim que soube, os planos para o dia – e para os tempos seguintes – alteraram-se. “Realmente já não fui dar a aula. Voltei para casa a dizer ao Zé Carlos (então seu namorado) ‘olha, está uma revolução em Portugal’, e ninguém queria acreditar”.

Foram a correr pela vizinhança, onde viviam vários portugueses fugidos à guerra, para dar a boa nova. Nesse dia “já não houve trabalho para ninguém”. Começaram então os planos para o regresso a Portugal, que para Merita não pôde ser imediato, pois estava grávida.

O companheiro, que tinha ido para Portugal pouco depois da revolução, regressou para o nascimento da filha. Voltaram depois, já com a família completa, e fizeram a festa da liberdade em Vila Nova de Ourém, para onde foram viver.

Eu e ele fazíamos parte de um movimento revolucionário, digamos. E tínhamos encontros, reuniões com muita gente desse movimento e, portanto, não era propriamente uma festa contínua, mas encontrávamo-nos muitas vezes nas reuniões e falávamos disso”, afirma.

Foi nesses encontros que discutiam o que poderiam fazer por Portugal, já que “o país estava com necessidade de que houvesse uma grande revolução cultural e até de instrução”.
Uma peça-chave da revolução
A revolução fez-se em Portugal, mas não teria sido a mesma sem aqueles que estavam lá fora. “Eu penso que o papel [dos exilados], apesar de passivo, no sentido em que não estávamos diretamente ligados ao país - estávamos a viver no estrangeiro, portanto, não era uma atividade explícita - foi bastante importante no sentido em que nós estávamos organizados”, considera Rui Mota.

O antigo exilado explica que grande parte dos desertores e refratários estavam organizados em comités, organizações sociais, coletividades, associações, órgãos de comunicação. “E aqueles mais ativos, que eram uma minoria, objetivamente, estavam frequentemente nas notícias holandesas. Davam entrevistas, eram chamados a colóquios, à televisão, à rádio, etc. Eu próprio dei uma série de entrevistas durante aqueles anos em que estive exilado”, conta.

“Porque na Holanda, na altura, existia um grande movimento anticolonial, não só relativamente às colónias portuguesas, mas relativamente ao Vietname, à guerra da Argélia, etc. E, portanto, os holandeses estavam muito empenhados nessa altura e havia comités de solidariedade muito fortes que divulgavam as lutas anticoloniais, entre elas as portuguesas”.

Para Joaquim Saraiva, os exilados tiveram “uma quota-parte para que fosse possível o 25 de Abril naquela altura”. Uma das razões era o facto de a ausência desse grande número de portugueses provocar falta de mão-de-obra, o que, por sua vez, agravava o descontentamento em Portugal e contribuiu para acelerar o processo revolucionário.

Merita Andrade acredita que o grande número de desertores e refratários ajudou a esclarecer a opinião pública. “Já ninguém queria aquela guerra colonial, já ninguém acreditava naquilo e, portanto, a revolução era qualquer coisa que vinha trazer a mudança”, frisa.

Depois do 25 de Abril, muitos dos exilados que iam regressando continuavam a ter um papel ativo e fulcral para o pós-revolução. “Ainda me lembro que em Ourém, que foi onde eu vivi quando viemos de França, a gente sentia na população em geral uma vontade de fazer coisas a favor dos ditos pobres da altura, das pessoas que não eram fascistas”.

Nesse sentido, fez alguns cursos de alfabetização e, como assistente social, chegou a acompanhar casos “muito dramáticos” de crianças. São tempos que lembra com tristeza e que espera que não se repitam. “Que a Revolução dos Cravos te mantenha forever. Que a gente nunca mais volte atrás”, espera.