Dexametasona. Medicamento milagre ou simples bóia salva-vidas?

Enquanto se espera por uma vacina para o Sars-Cov-2, a pandemia de Covid-19 está a trazer para a praça pública algumas hipóteses de tratamento com fármacos bem conhecidos da comunidade médica. Já muito se falou do antiviral remdesivir ou da cloroquina e da hidroxicloroquina, utilizadas para o tratamento da malária/paludismo. A mais recente estrela é a dexametasona, aplaudida pela própria Organização Mundial de Saúde, com algum alívio, como "razão para celebrar".

Graça Andrade Ramos - RTP /
Exemplo de pílulas de dexametasona vendidas num farmácia da Nicarágua, dia 18 junho de 2020 Jorge Torres - EPA

Apesar do entusiasmo da OMS, este é um medicamento que também não está isento de riscos.

Também não evita a contaminação como o novo coronavírus nem cura a Covid-19. O que pode fazer é ajudar o corpo a responder à infeção e a vencer a doença, entre indícios de que as doses do fármaco devem ser bem controladas.

A sua eficácia enquanto ajudante à sobrevivência em doentes com Covid-19, foi objeto de um estudo britânico conduzido pela Universidade de Oxford na iniciativa RECOVERY, que procura fármacos já existentes que possam auxiliar no combate à Covid-19.Os testes com o medicamento iniciaram-se em março e os resultados foram divulgados num comunicado de imprensa a 16 de junho. Um relatório preliminar  surgiu dia 22, na medRxiv.

De acordo com o estudo, administrada em doses baixas a moderadas a cerca de dois mil e cem doentes hospitalizados com Covid-19, a dexametasona provou ser capaz de reduzir em cerca de um terço o número de mortes dos pacientes graves a necessitar de ventiladores. Entre os doentes com Covid-19 a necessitar de oxigénio, a redução de óbitos foi de um quinto.

Os resultados clínicos demonstraram ainda que os doentes com Covid-19 que não necessitavam de ventiladores ou de oxigénio não retiraram quaisquer benefícios do tratamento com dexametasona.

"Se os pacientes que tiverem Covid-19 e estiverem em ventiladores ou a receber oxigénio, receberem dexametasona, serão salvas vidas, a custos muito baixos", frisou Martin Landray da Universidade de Oxford, que co-liderou o estudo.
Barato e acessível
Conhecida há mais de 60 anos, a dexametasona está livre de patentes, o que diminui os custos de produção. Como anti-inflamatório trata também diversas doenças, pelo que é de uso corrente, se bem que não de venda livre.

Além de reduzir o número de mortes, o medicamento é acessível e barato, o que o torna um recurso atraente para economias mais pobres gravemente afetadas pela pandemia e, por isso, para a OMS.

O responsável desta, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse há dois dias que o próximo desafio será aumentar a produção e distribuir a dexametasona, uma vez que o número de novos casos confirmados em todo o mundo tem estado a bater recordes diários, acima dos 180 mil.

A OMS apressou-se a esclarecer, contudo, que o medicamento só deve ser administrado nos casos mais graves de Covid-19 e apenas com acompanhamento médico.


Mal foram conhecidos os resultados do estudo da RECOVERY, a dexametasona passou do anonimato ao estrelato e assumiu aura de milagreira.

A sua procura subiu em flecha, o que levantou receios de que possa vir a escassear.
Todos querem
Terça-feira, Stephen Saad, presidente do Conselho de Administração da farmacêutica sul-africana Aspen, a maior fornecedora de medicamentos do país, anunciou que poderia produzir no prazo de um mês 10 milhões de comprimidos de dexametasona, "caso seja necessário" e o seu uso no tratamento da Covid-19 seja aprovado.

Saad revelou que já recebeu encomendas da OMS, da Unicef e de outras agências.

Também a britânica Hikma Pharmaceuticals, que opera nos Estados Unidos, disse que os pedidos de dexametasona aumentaram "substancialmente".

"Temos para já recursos suficientes e capacidade de produção capaz de fornecer o mercado norte-americano com mexametasona pelo menos num futuro próximo", afirmou um porta-voz.

Em Portugal, o Infarmed admitiu que o medicamento já pode estar a ser usado no tratamento de pacientes com Covid-19 mas pediu prudência.  
Como atua a dexametasona

Enquanto se aguardam novos dados, é importante perceber o que é e como atua no corpo a dexametasona e porque pode ser tão importante, enquanto se espera por uma vacina.

A base do medicamento é um glicocorticóide ou corticosteróide, reprodução sintética da cortisol, uma hormona da família dos esteróides, produzida pela parte superior das glândulas suprarrenais localizadas na parte superior dos rins.

Um corpo produz cortisol em resposta ao aumento de stress e a baixos índices de glucose no sangue. A função desta hormona é aumentar os níveis de açúcar, suprimir o sistema imunitário, alterar a função cardíaca e auxiliar o metabolismo de gorduras, de proteínas e de carboidratos.

Enquanto substituta sintética da cortisol, a dexametasona é usada há décadas para tratar doenças como inflamações virais da laringe e dos brônquios em crianças, crises de asma e a artrite reumatóide, entre outras.

Na Covid-19, a ação do medicamento parece estar ligada à supressão da resposta hiperativa do sistema imunitário desencadeada nalguns pacientes como resposta ao vírus, de forma a evitar que esta destrua também células saudáveis, como as encontradas nos pulmões.

O estudo da Universidade de Oxford ainda carece de revisão e já se levantaram vozes céticas. Outros estudos de menores dimensões estão ainda a decorrer e poderão confirmar ou desmentir os resultados obtidos.
Contradições
Um deles, liderado pelo Imperial College London, de Inglaterra, e publicado na revista The Lancet, dia 18 de junho, revela indicadores que parecem contradizer os resultados do de Oxford.

Afirma mesmo que a cortisol, a hormona esteroide conhecida como hormona do stress e da qual deriva a dexametasona, foi identificada em grandes quantidades no sangue de doentes com Covid-19 e contribuiu para uma menor esperança de vida.

O estudo baseou-se em 535 pacientes, incluindo 403 com Covid-19. Estes tinham níveis basais de cortisol significativamente superiores aos dos que não tinham a doença e cerca de três vezes mais elevados do que os produzidos pelo corpo após, por exemplo, uma grande cirurgia - quando podem chegar a 1.000 nm/L.

A diferença era ainda mais significativa dentro do grupo de doentes com Covid-19. Entre os infetados com níveis de cortisol de 744 ou menos, a taxa média de sobrevivência foi de 36 dias. Entre os que tinham 744 ou mais sobreviveram somente 15 dias.

"Do ponto de vista do endocrinologista, faz sentido que os pacientes com Covid-19 mais doentes tenham níveis mais altos de cortisol, mas esses níveis são preocupantemente altos", reagiu Waljit Dhillo, líder do estudo, em comunicado.

Ao tentar suprimir a hiperatividade do sistema imunitário, detetada em alguns doentes com Covid-19, corre-se o risco de que este deixe completamente de cumprir a sua missão.

A influência de níveis elevados de cortisol é uma das razões que tem levado até agora a OMS e muitos países a aconselhar prudência no uso de esteroides como a dexametasona no tratamento de pacientes com coronavírus.
Surpresa
Os resultados do estudo da Universidade de Oxford causaram por isso alguma perplexidade. "São surpreendentes", reconheceu Kenneth Baillie, especialista de cuidados intensivos na Universidade de Edinburgo, no Reino Unido, que integra o comité do RECOVERY. "Irá ter claramente um impacto global", acrescentou.

No estudo conduzido pela Universidade de Oxford, os 2.100 participantes receberam doses baixas a moderadas de seis miligramas por dia durante 10 dias, tendo sido comparados resultados com cerca de 4.300 pacientes que receberam o tratamento corrente para a infeção do coronavírus.

O efeito foi notado sobretudo nos casos críticos ventilados. O risco de morte foi reduzido também em 20 por cento entre os que necessitavam de oxigénio. Nos doentes sem sintomas graves o tratamento não teve efeito.



"É um enorme avanço", afirmou Peter Horby, um especialista em doenças infeciosas da Universidade de Oxford e um dos principais investigadores do estudo.

Horby nota que o uso de esteroides no tratamento de doenças respiratórias virais, como a Covid-19, se mantém controverso. Dados recolhidos noutros estudos, como em surtos da SARS, foram inconclusivos.

Apesar disso, dada a grande disponibilidade e a disseminação da dexametasona, a par de alguns resultados promissores, o investigador explicou que os responsáveis do RECOVERY consideraram adequado testar o medicamento num teste clínico rigoroso.Face aos resultados obtidos, o Governo britânico já ordenou o uso do medicamento nos casos graves de Covid-19, sobretudo aqueles a necessitar de ventilação.

O teste da iniciativa RECOVERY parece indicar que, nas doses aplicadas, o benefício do tratamento com esteroides ultrapassa o risco. O estudo também não detetou consequências adversas ao tratamento. "Pode ser dado praticamente a qualquer pessoa", afimou Horby.

Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional dos EUA para as Doenças Alergicas e Infecciosas, ficou menos surpreendido e sublinhou que o padrão da resposta obtido pelo RECOVERY nos pacientes com casos graves de Covid-19, corresponde à noção de que a reação imunitária hiperativa pode ser prejudicial em infeções graves de longa duração.

"Quando já se está tão doente que se está num ventilador, é normalmente porque se sofre se uma resposta inflamatória hiperativa ou aberrante, que contribui tanto para a morbilidade e mortalidade como qualquer efeito direto do vírus", afirmou.
Outras respostas
"Encontrar tratamentos eficazes como este irá transformar o impacto da Covid-19 nas vidas e economias de todo o mundo", reagiu com entusiasmo Nick Cammack, responsável por uma iniciativa de combate à pandemia de uma organização londrina de investigação biomédica sem fins lucrativos, a Wellcome.

"Enquanto este estudo sugere que a dexametasona beneficia apenas casos graves, inúmeras vidas serão salvas globalmente".

Na manga da OMS existe também a Kaletra, uma combinação de medicamentos antivirais habitualmente ministrada a doentes com VIH, que poderá também ajudar os casos menos graves de Covid-19.

Estes medicamentos, lopinavir-ritonavir, têm sido usados desde o ano 2000 nos Estados Unidos da América para diminuir a velocidade de multiplicação do VIH, o que que reduz o número de vírus no corpo do paciente e atrasa o desenvolvimento do SIDA.

Até agora, o único outro fármaco que provou ser benéfico em larga escala no tratamento sintomático da Covid-19, em grandes testes clínicos controlados, é o antiviral remdesivir. Está provado que pode ajudar a diminuir o tempo de hospitalização mas o seu impacto no número de óbitos não é estatisticamente significativo.

O remdesivir é também escasso. A sua fabricante, a americana Gilead Sciences de Foster City, California, aumentou a produção mas o fármaco ainda só está disponível num número escasso de hospitais em todo o mundo.
PUB