Abril: Um ano sem Manoel de Oliveira

Oliveira queria fazer mais filmes, mas o tempo não deixou. Com mais de 70 películas, trabalhou praticamente até ao fim. Morreu a 2 de abril de 2015, com 106 anos e com projetos por terminar. Era o realizador mais velho do mundo em atividade, mas a sua marca no mundo do cinema não se fica pela admirável longevidade. Contra estereótipos e lugares-comuns, Manoel de Oliveira nunca foi inteiramente compreendido pelos portugueses, mas a aclamação internacional deu-lhe valor perante os nossos olhos.

Num ano de perdas irreparáveis para a cultura portuguesa, a ausência de Manoel de Oliveira é das que mais se fez sentir. O cineasta português faz parte de um leque de nomes que são colossais para um país tão pequeno.


Rita Ramos, Pedro Pessoa - RTP (2 de abril)

Herberto Hélder (que morreu a 23 de março), cuja poesia é praticamente desconhecida do grande público, Manoel de Oliveira, com planos-sequência longos e um cinema “aborrecido” e “incompreendido”, expressões frequentemente ouvidas em praça pública.

Sobrevivente a lugares-comuns inextrincáveis quanto à sua forma de estar no cinema, Manoel de Oliveira filmou até ao fim da vida sem se deixar vencer pela velhice. Com 106 anos e ainda a trabalhar, era o realizador mais velho do mundo ainda em atividade: “O meu destino é fazer cinema.

Se durasse 200 anos, fazia filmes até esse tempo”, admitiu à RTP por ocasião do seu 105.º aniversário.

Para além da longevidade e atividade que lhe era admirada no mundo do cinema, Manoel de Oliveira mudou a forma de olhar e conceber o cinema como outros grandes nomes do século XX. Portugal parou durante vários dias para homenagear aquele que foi o maior cineasta português de todos os tempos, o Governo decretou dois dias de luto nacional e cinéfilo e da cultura comoveu-se com a morte de um artista que é incontornável, independentemente de gostos e feitios.
Realizador tardio
Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no Porto a 11 de dezembro de 1908. Entre curtas e longas-metragens, realizou mais de 70 filmes até ao fim da vida.

Mas não foi no cinema que Manoel pela primeira vez ganhou notoriedade. Desportista em várias modalidades, desde as corridas de automóveis à natação e ao atletismo, foi atleta do Sport Clube do Porto. Chegou mesmo a acompanhar o irmão como trapezista. A atividade física abundante enquanto novo valeu-lhe a maior resistência ao tempo.

O cinema, todavia, sempre o acompanhou. Depois de uma breve passagem pela carreira de ator, nomeadamente em A Canção de Lisboa (1993), ao lado de Vasco Santana, realizou o primeiro filme aos 23 anos. O documentário Douro, Faina Fluvial (1931), inspirado na sua cidade natal e idealizado depois de ter assistido ao filme "Berlim, Sinfonia de uma Capital" (Walther Ruttmann, 1927), conta a vida em redor de um rio que estaria presente nos vários trabalhos que se seguiram. A película, uma homenagem à sua cidade de sempre, é ainda hoje objeto de estudo para vários cinéfilos que a consideram uma referência para o género documental. De um período mais escasso em filmes há a destacar Aniki Bobó (1942), a primeira longa-metragem da carreira, e que é o trabalho mais popular entre o público português.


Ana Luísa Rodrigues, Luís Vilar - RTP (2 de abril)

Mas pelo menos durante 14 anos o realizador guardou os projetos na gaveta. A vida de Oliveira durante a ditadura não foi fácil e chegou mesmo a ser preso pela PIDE, tendo passado alguns dias na prisão do Aljube, em Lisboa.

Ironicamente, a Revolução de Abril trouxe dificuldades à família, associada indiretamente aos círculos do Estado Novo. Dinheiro e meios faltaram durante essa época, à medida que o cinema comercial se distanciava das suas técnicas e linguagem cinematográfica.

O contexto cultural e histórico levou a uma das características que torna Manoel de Oliveira um caso particular. Quando chegou aos 70 anos e muitos dos seus contemporâneos se reformavam, o cineasta estava apenas a começar. Manoel de Oliveira dedicou-se a tempo inteiro ao cinema apenas a partir dos 73 anos. Amor de perdição (1979) é filme que lhe dá verdadeiro reconhecimento a nível mundial, principalmente em França e Itália.

Aos 80 anos e depois das restrições, Oliveira estabelece a média de um filme por ano.

O curta-metragem Velho do Restelo, com textos de Camões e Cervantes, foi o último filme que realizou (estreou a dezembro de 2014). O Gebo e a Sombra (2012) foi a sua última longa-metragem.

Visita ou Memórias e Confissões, o filme póstumo pronto desde 1981, e que Oliveira guardou para ser difundido após a sua morte, estreou em alguns festivais de cinema de Lisboa e do Porto e alguns festivais a nível mundial. Em Portugal, deverá chegar aos circuitos comerciais durante o ano de 2016.
Cinema difícil
Os longos planos, travellings e movimentos de câmara, os diálogos lentos e complexos fazem parte do forte cunho pessoal que integra quase todos os filmes. Um cinema difícil, por vezes teatral, enquanto objeto de reflexão da própria arte. Como um romance que custa a digerir, tão distante das obras e dos temas mais consumidos nos circuitos comerciais. Manoel de Oliveira incorporava as tradições do cinema europeu bem como a aversão à moda e ao “fast food” cinematográfico. Evitava temas, atores ou qualquer elemento que se pudesse destacar perante o que realmente interessava: o filme.

O cinema era a sua maneira de refletir o passado e o presente. A evolução histórica que andou de mão dada com a própria evolução do cinema: das primeiras curtas de caráter mais documental, do cinema mudo, aos avanços que foi obrigado a fazer de forma a acompanhar os tempos.

Basta pensar que Oliveira começou a realizar quando o cinema ainda era mudo e a preto e branco. Quem o conhece diz que estava sempre disposto a aprender novas técnicas.

Manoel de Oliveira realizou filmes sobre a História de Portugal desde a época dos Descobrimentos até aos períodos antes de ditadura, o Estado Novo, passando também pela reflexão da atualidade.

Perante a resistência à sua forma de estar no cinema, Oliveira chegou a ter uma atitude arrogante perante a audiência que o criticava. Nos anos 80, dizia que não lhe interessava se apenas uma pessoa visse a sua obra. Mas na reta final da vida, Oliveira admitia o gosto pelo reconhecimento, das distinções dos prémios de carreira, de ver um filme seu compreendido: “Não há nada mais consolador para qualquer artista, seja realizador, escritor ou pintor, do que a compreensão do seu trabalho”, disse o cineasta aos microfones da RTP.


Alexandra Madeira - Antena 1 (6 de abril)

Recebeu vários prémios prestigiantes, nos mais variados festivais e certames do cinema mundial: Cannes, Veneza, Berlinale, São Paulo, Tóquio, Portugal.

A notícia da morte de Manoel de Oliveira preencheu as páginas da imprensa de todo o mundo, uma prova real desse prestígio que ia muito para além da idade. O alemão Die Zeit destacava que muitos críticos de cinema o colocavam "ao nível de Luis Buñuel, Jean-Luc Godard ou Frederico Fellini". Do Le Monde, também chegaram os elogios: "morreu um dos criadores mais originais da história do cinema".

Por altura do centenário do realizador, em 2008, o New York Times dedicava um artigo à sua singularidade e denominava Manoel de Oliveira de "uma força da natureza, um caso especial", com filmes "pensativos, melancólicos, com qualidades memento mori".

Grande mestre e ícone do cinema português, também ele morreu na dúvida permanente e sem compreender por inteiro a Sétima Arte, a que dedicou a longa vida: “No cinema, a câmara pode fixar um momento, mas esse momento já passou. Já não temos a certeza se esse momento existiu fora da película, ou a película é uma garantia da existência desse momento. Não sei, ou disso sei cada vez menos. Vivemos numa dúvida permanente”.