Artista Odete conspira contra a História por excluir certos corpos e práticas

por Lusa

Depois de ter ouvido várias vezes que alguns lugares não são para "certos corpos", a artista transgénero Odete venceu a primeira edição do concurso RExFORM -- Projeto Internacional de Performance, uma conquista sentida como "um feito", na história das artes portuguesas.

Desta vez não foi o preconceito que impediu a apresentação do projeto vencedor, a `performance` "On Revelations and Muddy Becomings", no Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), que tinha estreia marcada para 15 janeiro. Foi a necessidade de um confinamento para combater a expansão da pandemia, que obrigou a cultura a encerrar a partir desse mesmo dia.

"Ganhar o prémio é importante, sobretudo pelo peso que tem uma instituição como o MAAT, e quando se tem 25 anos acabados de fazer", disse, entrevistada pela agência Lusa.

Para a artista, nascida no Porto, em 1995, e a residir em Lisboa, esta conquista "é realmente um feito, porque não há muita representação `trans` na História da arte portuguesa, e nas artes portuguesas em geral", e considera-a mesmo "um marco histórico" porque "em Portugal faltam muitas coisas no que toca a política de identidade".

"De repente, aceder a um espaço, um museu conceituado, sobre o qual foi dito a certas pessoas que não é delas, tem um impacto histórico nas artes portuguesas estar presente, até porque um museu tem uma atividade de arquivo importante", destacou a artista, que fez o curso de Artes do Espetáculo na Academia Contemporânea do Espetáculo -- Escola de Artes, no Porto, em 2013, e tem também um bacharelato em Estudos Gerais, pela Universidade de Lisboa.

Odete - cujo trabalho se encontra no cruzamento da escrita, da música, da `performance` e das artes visuais - apresentou anteriormente trabalhos em espaços culturais como o Teatro São Luiz, em Lisboa, e os teatros Rivoli e Carlos Alberto, no Porto, mas esta seria a primeira vez que estaria presente com a sua arte num museu.

O espetáculo deverá ser remarcado no MAAT para o final do confinamento, e está também prevista a apresentação na Bienal BoCa de Arte Contemporânea, a partir de setembro, em Lisboa, contando ainda com a participação dos artistas Tita Maravilha e Herlander.

Cerca de 90 artistas apresentaram candidaturas ao RExFORM -- Projeto internacional de Performance, que incide sobre a `performance` "entendida enquanto prática colaborativa com ramificações que envolvem novos conceitos de teatralidade, coreografia e medialidade", segundo o concurso lançado no ano passado pelo MAAT.

Não sendo a prática artística favorita de Odete, a `performance` "é a mais central, porque é um meio artístico com maior abertura do que a pintura ou a escultura só por si, por exemplo, e é aquele onde convergem todas as outras práticas, seja música, dança, escrita, acaba por ser o espaço mais orgânico".

Ao concurso, cujo vencedor recebe 12.000 euros para a concretização e apresentação de um projeto, concorreu com "MTF Priestesses Cutting The Bone to Reveal It`s Lie", no qual propôs "uma abordagem crítica ao silêncio histórico em torno das questões do corpo, identidade de género e do mundo `queer`".

Desde o início da carreira que Odete tem vindo a trabalhar "sobre as sombras e a política", conspirando contra o que considera ser "a escrita da História no sentido de nela inscrever certos corpos e práticas excluídas".

"Ter de me envolver em linguagens políticas para ter coisas básicas como direitos, isso vem da minha experiência pessoal. Eu também olho para o projeto como uma estratégia de pensar uma instituição artística como ferramentas vitais para sustentar certas comunidades, pessoas e práticas que não são sustentadas de outra forma, em termos de espaço, representação e financeiramente", sublinhou.

Sobre a abertura das instituições culturais portuguesas a artistas transgénero, Odete considera que, "apesar de haver uma estrutura opressora na sociedade portuguesa em geral, não chega a haver discriminação, mas uma certa exotificação, uma curiosidade quase mórbida pela realidade `trans` que prejudica um bocadinho o acesso a estes espaços institucionais, e a estes apoios financeiros".

Relativamente à pandemia teve impacto no seu quotidiano e nos apoios que tem tido, a artista referiu que tem estado a ocupar-se sobretudo de projetos na área da música, a criar bandas sonoras para filmes e espetáculos a nível internacional.

"De certa forma, isso tem-me sustentado durante a quarentena, mas se calhar não é o suficiente para me sustentar dois ou três meses. Para já, é possível sobreviver, mas o futuro está muito incerto", disse, alertando para o facto de conhecer artistas "em situação limite".

"Na quarentena passada, estava a receber cerca de 200 euros por mês, mas isso não é sustentável", avaliou, sugerindo que os apoios deveriam passar por reduzir valores no pagamento de rendas, por exemplo.

O projeto foi composto por três partes -- um livro mágico, um videojogo e uma `performance` -- e pretende ficcionar uma sociedade secreta que se apresenta ligada a nomes como Joana d`Arc, Eliogabalus e Chevalier D`Eon.

A escolha foi feita por um júri composto pela diretora do MAAT, Beatrice Leanza, a curadora sénior de `performance` da Tate Modern, Catherine Wood, a diretora de artes performativas do Centre Pompidou, Chloé Siganos, e o diretor artístico da BoCA, John Romão.

O prémio foi criado em parceria pelo MAAT e a BoCA - Bienal de Arte Contemporânea, com o objetivo de apoiar criações de jovens artistas até aos 35 anos, encorajando novos discursos sobre a evolução do conceito de `performance`.

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