BD de Marcelo D`Salete sobre escravidão no Brasil chega a Portugal no fim do mês

por Lusa

Uma extensa pesquisa sobre a história dos escravos no Brasil serviu de base a "Cumbe", novela gráfica de Marcelo D`Salete elogiada pela crítica brasileira e que chega a Portugal no final deste mês, numa edição da Polvo.

Em entrevista à Lusa em Lisboa, o autor paulistano nascido em 1979, que é também ilustrador e professor, e estudou Design Gráfico, Artes Plásticas e História da Arte, disse ter iniciado a sua pesquisa sobre este tema ao aperceber-se de que, apesar de "a perspetiva negra da escravidão ser um tema importante da história brasileira, estava pouco representado em termos narrativos -- e também em narrativas de quadrinhos".

"Essa ideia surgiu já há um bom tempo, em 2006, quando eu comecei a pesquisar sobre o período da escravidão, sobre um conflito que existiu no Brasil colonial no século XVII, que foi o do quilombo dos Palmares", indicou, explicando que quilombo era o nome dado às comunidades formadas no mato por escravos fugidos das fazendas.

"Foi um grande quilombo, onde viviam mais de 20.000 pessoas, e foi um dos maiores problemas para o poder colonial português naquele período, na região que é hoje o estado de Alagoas; houve mais de 40 expedições que foram até lá para destruí-lo, mas não deram certo, e ele perdurou por cerca de 100 anos, desde o final dos anos 1500 até 1694", resumiu.

Ao começar a estudar aquele período, "pensando nessa narrativa maior sobre Palmares" -- um livro que está ainda a fazer e que conta publicar no final do próximo ano -, Marcelo D`Salete teve "a ideia de criar o livro `Cumbe`, a partir de algumas narrativas da época que não estavam diretamente relacionadas com Palmares, mas que falavam sobre a escravidão de uma perspetiva dos africanos escravizados".

E precisou que prefere a palavra `escravizados` à mais comummente utilizada `escravos`, por uma questão de rigor, porque têm cargas diferentes: "Eles não nasceram escravos, alguém os escravizou, o colono português; por isso, são escravizados. Ao chamarmos-lhes `escravos`, estamos a atribuir-lhes uma condição anterior, como se tivessem nascido assim, como se serem escravos fosse inerente à sua condição humana".

O autor decidiu contar estas histórias em quadrinhos, porque, até agora, o que havia nesse formato tinha um objetivo didático e quantificava a escravidão, traduzia-a em números -- quatro milhões de africanos foram transportados nos navios negreiros para o Brasil, dez milhões para todo o continente americano -, era uma macronarrativa que os desumanizava.

As histórias narradas em "Cumbe", palavra de origem quimbundo, "que é uma língua dentro desse tronco maior que é o banto, que tem o significado de sol, energia, força, e também é sinónimo de quilombo em alguns países da América Latina", foram a sua tentativa "de os humanizar, de reconstituir um pouco da personalidade, da cultura desses povos que foram parar no Brasil de uma forma forçada".

Assim nos apresenta, numa obra considerada uma das melhores Bandas Desenhadas editadas no Brasil em 2014, personagens que resistiram de forma quotidiana e perene à opressão esclavagista. Para tal, pesquisou a linguagem utilizada pelos escravos nessa época -- razão pela qual nela se inclui um glossário -, embora num dos contos, "Sumidouro", a mensagem seja passada quase sem palavras para ilustrar a dor de uma escrava cujo filho recém-nascido é morto.

"Esse era um dos focos principais do livro, fazê-lo a partir dessa perspetiva negra e tentar reconstruir um conjunto de relações entre eles, criando um drama a partir dessas relações, criando possibilidades de interação, de convivência entre eles", frisou.

Foi por essa razão, insistiu, que "foi importante pesquisar muito sobre alguns traços de origem banto que existem no Brasil até hoje, como é a questão da linguagem, da música", e empenhou-se também em "colocar isso de uma forma gráfica, a partir de alguns símbolos, principalmente de arte Tchokwe, mas também de outros grupos étnicos".

"Tem inclusive uma lenda que aparece na última história, que fala do quibungo, uma espécie de bicho-papão de origem angolana, coletada por pesquisadores no início do século XX e que eu trouxe para o livro porque achei que era importante reconstruir esse imaginário", concluiu.

 

 

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