Das aldeias africanas para as salas de Londres, o cinema de Júlio Silva cumpre 15 anos

por Diana Palma Duarte RTP

É realizador de filmes em Moçambique e Cabo Verde há mais de uma década.
O moçambicano Júlio Silva chegou ao cinema através da antropologia, a sua área de especialidade.
Entretanto escreveu livros sobre música tradicional e contos crioulos.
Não pará nunca no mesmo sítio. Nem na pandemia que o obrigou a saír de África e a instalar-se em Lisboa.
Por ter sempre continuado a trabalhar, o mais recente filme intitulado " O poeta da Ilha", gravado em várias ilhas cabo-verdianas, chegou ao Luxemburgo onde ganhou um prémio no Festival de Migrações e a Roterdão, cidade holandesa de onde também saíu premiado. Dentro de três meses, a mesma longa vai ser exibida em Londres e Manchester e, adianta à RTP, para os 50 anos do 25 de Abril, poderá ser vista em Lisboa na UCCLA.

Soube que embora seja muito conhecido em Moçambique pelo seu trabalho, vive mais fora do seu país. É um viajante.

" Eu passo a vida a viajar entre todo o Moçambique, nas zonas rurais e é lá onde me sinto bem. É lá onde me realizo
Eu ando de carro, eu ando de comboio, de mota....vou tendo a sorte do povo ser muito simpático e hospitaleiro e como tal é sempre uma novidade alguém chegar de fora."

Os seus filmes estão muito ligados ao seu lado de antropólogo.

"Sim, tal como eu faço investigação sobre os instrumentos tradicionais de Moçambique, tambem faço a investigação de usos e costumes.
Tudo aquilo termina com um final de dia ou um por do sol e com o almoço, porque há aldeias onde só há uma refeição diária. E depois há aquelas bebidas tradicionais e as pessoas começam a contar histórias do seu passado, mitos da sua zona...e tudo aquilo é material em bruto que eu recebo.
Depois transformo aquilo para cinema, vou buscar um bocadinho da história dessa aldeia e de outras e faço um guião".

Se esse é o seu método de trabalho como será o tamanho da sua equipa?

" Eu tenho uma equipa que cabe dentro de um carro.
Um dos elementos fundamentais é a cozinheira porque naquelas zonas é complicado: há muitas comidas tradicionais e ficamos receosos mas eu experimento sempre.
E outra coisa que admiro muito no campo é a amabilidade e respeito que as crianças têm perante os velhos e a sabedoria deles em relação ao seu habitat
É o que faz com que eu esteja sempre por lá".

Mas haverá uma mudança completa, uma transição completa entre as cidades e o interior.

" Quando estou em África bebo de África. Quando estou na Europa bebo filmes da Europa.
E isso tudo fortalece-me.
Em breve vou fazer uma história sobre uma Europa que se liga a África, numa interligação entre os dois continentes.
Vou sempre com um cameramen e um tradutor, um operador de som e uma secretária".

Isso é uma vida de sonho...

" E são muitos dias. Sim, já faço isso há vinte e tal anos. Fico o tempo que quiser sem prazos.
Quando chegamos a uma aldeia a primeira coisa que temos que fazer é dirigirmo-nos ao chefe da aldeia e depois o tradutor diz o que vamos lá fazer.
No princípio ficam desconfiados mas passado um bocado a sessão de fotos é um sucesso e a pouco e pouco aproximam-se e com confiança tudo acontece.
É quase uma reperage. Eu fico práticamente uns quatro ou cinco dias antes a conviver. Faço depois um pequeno casting. Ás vezes vou bebendo deles histórias e à noite vou escrevendo.
Eu escrevo livros de contos africanos sendo assim mais fácil as coisas fluirem.
Mas faço ficção porque para mim é fascinante levar aqueles filmes para serem projectados nessas aldeias."

Continua a haver muito misticismo?

" Há muito misticismo. Antes de fazerem qualquer coisa eles fazem uma cerimónia de permissão aos espíritos para que possamos realizar isto ou aquilo. "

Nunca se deixa impressionar?

" Eu sou antropólogo e como tal vejo sob um ponto de vista da investigação e não julgo nem quero saber.
Vou bebendo, escrevendo, filmando e anotando. "

E já teve situações ou rituais que não quis publicar?

" Sim. Ritos de iniciação femininos. Tive esse privilégio mas nunca quis mostrar a ninguém. Aquilo é algo privado das mulheres.
Eles preparam toda a mulher para ser esposa, para saber tratar do marido.
Tudo aquilo tem vários processos e em cada zona há uma prática.
Que está no segredo dos deuses como eu costumo dizer.
É uma falta de respeito da minha parte.... eles abriram as portas da sua aldeia e confiaram em mim.... e acho que não é digno de mim ir lá fora comentar essas práticas. Só serve para a minha consulta e investigação.
Mas fiz um filme sobre casamentos prematuros que ainda hoje é levado para debates sobre o tema em vários sítios."

O Júlio é um " faz tudo".

" Depois das filmagens, escolho uma banda sonora, edito o som e a imagem, montando o filme até estar pronto.
E faço o meu cinema. Que tem a ver com meu povo.
Faço cinema do povo para o povo falados na língua do povo."
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