Dziga Vertov e o mausoléu cinematográfico de Lenine

por RTP
DR

O documentário "Três canções para Lenine" era, ao mesmo tempo, a obra de um cineasta inovador e experimentalista, e de alguém que procurava sobreviver prestando preito de vassalagem ao chefe supremo do regime soviético pós-leninista.

O realizador soviético David Abelevič Kaufman, conhecido pelo nome que adoptou, Dziga Vertov, tinha 21 anos à data da revolução de Outubro e foi tocado pela vaga de entusiasmo que esse ponto de viragem insuflou nas artes e letras.

Aparentemente, foram as declarações de Lenine a reconhecer o cinema como a arte, por excelência, da modernidade que decidiram Kaufman a tornar-se Vertov, e este a fazer carreira como realizador de cinema.

Foi influenciado pelo grande poeta da revolução, Vladimir Maiakosvky, e pelo futurismo na sua versão maiakosvkiana, e acabou por tornar-se um dos expoentes máximos do construtivismo, como movimento de vanguarda no cinema soviético.

Vertov caíu por isso sob o fogo da crítica estalinista, que o acusou de formalismo, e o empurrou para formas de expressão próximas daquilo que ficou conhecido como "realismo socialista".

Apesar da sua acomodação, e mesmo de algumas provas de subserviência que foi dando ao novo poder estalinista, Vertov continuava a ser-lhe suspeito e foi desaparecendo gradualmente dos écrans. Conseguiu escapar às purgas e morrer de morte natural (1954), mas não conseguiu, na recta final da sua biografia, escapar a uma irrelevância política e cultural quase completa.

O documentário "Três canções para Lenine", que rodou no Uzbequistão em 1934 e marca o apogeu da sua carreira no regime soviético, viria a ser reeditado em 1969, o que poderá explicar as imagens da guerra civil de Espanha e da Pasionaria que surgem na versão propagada pelo youtube.



Na sua versão original, do tempo do filme mudo, é uma expressão do culto da personalidade de Lenine, tal como ele foi instituído na época estalinista, e também um instrumento da campanha em prol do ateísmo que é levada a cabo nos anos 1920 e 1930, contra o obscurantismo religioso e a opressão da mulher nas repúblicas soviéticas de maioria muçulmana.

O primeiro intertítulo afirma, significativamente: "Na Europa, na América, em África e para além do círculo polar ártico, os povos cantam canções sobre Lenine, o amigo e libertador dos oprimidos. Ningém conhece os autores dessas canções, mas elas passam de família para família, de aldeia para aldeia".

Refere-se depois às canções dos povos soviéticos orientais, sobre a eletrificação, a emancipação das mulheres que antes envergavam a burka, a alfabetização dos que não sabiam ler.

A primeira canção intitulada "O meu rosto estava numa negra prisão" refere-se precisamente às burkas, com expressões como "eu era uma escrava sem grilhetas". Depois, aparecem jovens a tocar um clarim, anunciando "o alvorecer da verdade de Lenine".

Em contraste, surgem imagens de um sovkhoz próspero, cheio de galinhas, e de um tractor conduzido por uma mulher. Paralelamente, a letra da canção refere-se a Lenine, dizendo que "da escuridão ele fez luz, do deserto um jardim".

A canção que é tema da segunda parte intitula-se "Nós amávamo-lo" e prossegue: "amávamo-lo como amamos as nossas estepes. Não: mais ainda!". Nela abundam imagens de arquivo preciosas sobre a vida do dirigente bolchevique, intercaladas com a repetição, mórbida e contrastante, de um grande plano do cadáver de Lenine e vários outros sobre o seu cortejo fúnebre.

Entre os participantes das exéquias, reconhecem-se o medíocre Vorochilov, o ascético Dzherzhinsky, e Estaline, a apanhar boleia do culto da personalidade de Lenine, mas com uma iluminação algo sinistra, que faz dele um Iago do regime soviético, a manobrar na sombra do grande líder recém-falecido.

Em todo o caso, Dziga Vertov esforça-se por fazer eclipsar esses instantâneos do filme, certamente suspeitos aos olhos da NKVD, por trás da propaganda dos êxitos do regime. Na terceira parte, em torno da canção "Numa grande cidade de pedra", lança-se um apelo à realização de peregrinações ao mausoléu da Praça Vermelha: "Vem ver Lenin e a tua tristeza desaparecerá como a água".

Retrata-se também o trabalho árduo na estação hidroeléctrica de Dnieper, que é rotulada de "o melhor monumento ao grande construtor do socialismo". Uma trabalhadora que, com risco da própria vida, ultrapassou as metas do Plano, aparece a relatar, orgulhosa, como obteve a medalha da Ordem Lenine

É o tempo em que o partido completamente estalinizado se propõe "cumprir o Plano Quinquenal em quatro anos" e, por isso, incita os trabalhadores a fazerem mais do que lhes é pedido. O ambiente na indústria é pré-stakhanovista e na vida política prenuncia já a campanha de purgas que será lançada nesse mesmo ano de 1934, a pretexto do assassínio de Kirov.

No final, repete-se uma e outra vez o refrão: "Se Lenin pudesse ver o nosso país agora!". A repetição já exorbita o culto da personalidade de Lenine, para colocá-lo no lugar de um basbaque, inteiramente maravilhado com tudo o que se alcançou sob a liderança de Estaline. A pretexto de homenagear Lenine, Vertov está na verdade a prestar ao "pai dos povos", Estaline, o tributo de admiração que este exige.

O cineasta junta-se, desse modo, ao coro de violadores da vontade expressa de Lenine, que sempre quis ser enterrado como qualquer um, e nunca mumificado como veio a acontecer. O mausoléu cinematográfico de Vertov constitui, afinal, ironia e escárnio para os louvores que o líder revolucionário tecera ao papel do cinema na sociedade futura.
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