Imersão pré-histórica. Da arqueologia experimental à sustentabilidade ecológica

por Carla Quirino - RTP
Carla Quirino - RTP

Em março, investigadores das sociedades pré-históricas juntaram-se, na zona centro do Vale do Tejo, para uma imersão na Idade da Pedra. Os estudos arqueológicos sobre comunidades de caçadores-recoletores lançaram o mote e nove pessoas de cinco nacionalidades tentaram reproduzir o modo de vida de há 30 mil a sete mil anos.

Em março de 2024 d.C., o Vale do Tejo abrigou um grupo de pessoas que se interessam pelas sociedades da Idade da Pedra.

Assumidamente a viverem no século XXI, os participantes combinaram medicamentos ou uso de óculos com reproduções de objetos arqueológicos recuando a um tempo anterior ao advento da agricultura, da utilização de instrumentos metálicos e da escrita.

Com o compromisso de utilização reduzida, os telemóveis também acompanharam os membros do grupo que tentou resgatar o modo de vida dos antigos habitantes que percorreram o vale desde os últimos 30 mil a cinco mil anos antes de Cristo.

Pedro Cura é arqueólogo e, a par do professor alemão de pré-história Werner Pfeifer, organizou esta iniciativa.

Cura dedica-se à investigação de Arqueologia Experimental. Sendo um ramo científico que tenta gerar e testar hipóteses arqueológicas, nomeadamente ao reproduzir objetos ou ensaiar cadeias operatórias na produção de ferramentas, este acampamento permite-lhe simular o conhecimento arqueológico das comunidades nómadas e semi-nómadas dos períodos da pré-história.

A pequena comunidade recebeu a RTP e explicou o que procura com esta imersão da Idade da Pedra (Stone Age).



Os dias são passados sempre a fazer pequenas coisas que sejam necessárias, como cozinhar, remendar as roupas ou sapatos, explica Pedro. Cada um desenvolve as suas artes como cestaria, experimentação de flautas de chifre cabra, ou produção de bolsas de pele.

A arqueologia é a ciência que estuda as sociedades do passado e está aqui como pano de fundo fornecendo modelos, que vão desde ferramentas a recipientes cerâmicos. Os experimentadores procuram testar e aproximar-se da viabilidade desse modo de vida das culturas pré-históricas realizando várias tarefas do quotidiano utilizando cópias desses artefactos.


Sustentabilidade dos caçadores-recoletores
Werner Pfeifer tem 59 anos e é professor de pré-história no Museu/ Parque da Idade da Pedra de Dithmarschen, em Albersdorf, no norte da Alemanha. Especializado em dinamizar atividades ao ar livre relacionadas com o período Pateolítico, esta imersão é a 28ª que organiza, mas a primeira em Portugal.

Aos 20 anos, quando vivia na Namíbia, Pfeifer conta que lhe surgiu na cabeça um conjunto de perguntas em torno de “quem sou”, “quem veio antes de mim” , “antes dos germânicos” e por aí fora. Este raciocínio desencadeou uma conclusão simples “todos nós somos descendentes dos caçadores-recoletores do tempo da pedra lascada”, afirma.

O professor alemão sublinha que a “Idade da Pedra é o mais longo período da espécie humana”. Mais de 90 por cento de existência da espécie homo (desde há c. de dois milhões anos) viveu neste período, argumenta. Ao aprofundar a investigação "fiquei fascinado”.

Os caçadores-recolectores podem ter "alterado um pouco o ambiente mas não o destruíram", sobretudo “viviam em harmonia com a natureza”, acentua.

E acrescenta: “Só nos últimos talvez cinco-seis mil anos é que a sociedade começou a transformar-se. E curiosamente, sabe-se tão pouco do maior período da existência humana”.


Ao terminar o talhe da lâmina em sílex, Pfeifer recolhe todas lascas que sobram para não deixar qualquer vestígio que possa confundir trabalhos arqueológicos que ocorram nas redondezas.

Entretanto, Pedro descreve que acampamento é constituído, para além do espaço comunitário,  por vários abrigos só para dormir. Tal como na Idade da Pedra, estes pequenos espaços seriam sazonais logo não seriam complexos.

Durante a imersão, os abrigos foram montados aproveitando recantos do terreno e ramos das árvores para ficarem protegidos do vento. Tanto na cobertura como no interior são utilizadas várias peles, nomeadamente de vaca - simbolizando as grandes espécies de bovídeos extintos, como o auroque.

As camas são compostas por várias camadas de giestas colocadas por cima de pedras. Esta espécie de colchão eleva as peles de forma - caso chova - a água escorra por baixo sem as molhar.

Este aproveitamento dos materiais que a natureza oferece atraiu Ana Filipa Piedade. Estudou biologia na área da conservação e por isso diz estar “ligada à ecologia” desde há muito. Tem interesse “na identificação de animais e de plantas e conhecer o meio envolvente”. 

Inspirou-se nas artes ancestrais, nomeadamente nos curtumes de peles aplicando apenas processos naturais e lançou um livro sobre o tratamento de pele de ovelha: "Sheepskin tanning guidebook: the fat tanning method".

Apaixonou-se pelo modo de vida dos caçadores-recoletores, especialmente, por serem sociedades sustentáveis, alega.


Recursos da natureza
Explorar os recursos que existem nas redondezas faria parte do quotidiano dos caçadores-recoletores. Não muito longe, o grupo reabastece com água de uma nascente os contentores, que podem ser de origem vegetal ou animal, como bexigas de cervídeos, e ainda cerâmicos.

Os alimentos existentes para os dias da imersão foram previamente adquiridos e preparados. Na lista, estão frutos secos, carnes secas e leguminosas desidratadas. Desda forma, os experimentadores, embora munidos com licença de pesca, apenas se propõem simular a atividade de pesca.

Para isso, Werner, Filipa e Pedro precisam de recuperar uma armadilha cilindrica feita de salgueiro -a naja -, que deixaram mergulhada junto à margem. Ao contemplar a paisagem, Cura descreve a flora e a fauna que são características ao longo do Vale do Tejo e seus afuentes.



As chuvas dos dias anteriores fizeram subir o nível das águas dificultando a recolha da naja. Nesta simulação, só dias depois se conseguiu recolher a cesta. Nenhum peixe foi pescado. No entanto, valeu pela experimentação, que passou pela manufatura aos gestos dos participantes.

Durante a imersão pré-histórica, Pedro Cura procura ensaiar um tipo de anzol produzido em osso, à semelhança de artefactos da mesma matéria prima encontrados em sítios arqueológicos como em Vila Nova de São Pedro, na Azambuja ou numa gruta na Serra de Aire.



O anzol produzido apenas demonstrou as etapas da manufatura, nunca foi lançado à água.
Búzio anuncia o almoço
Chega a hora da refeição do grupo. A reunião é anunciada pelo toque de búzio. Teresa Azorín, que também cozinhou neste dia, faz o chamamento dos participantes que estão nos abrigos individuais. Instalam-se junto à tenda comunitária, à volta do tacho cerâmico e da pequena fogueira - que nunca fica sem vigilância -, e é só acesa para demonstrar técnicas de cozinha.

Todos trazem os recipientes que servem como pratos e talheres feitos pelas suas mãos, ora cerâmicos ora esculpidos em madeira. Neste dia, o manjar foi favas desidratadas com carnes secas e não faltou o "café" de bolota.



Werner relembra que o mundo atual enfrenta um “grande problema com o ambiente, e com o esgotamento dos recursos”. Acredita que ao “encorajar as pessoas a aprenderem mais sobre as comunidades passadas que viviam de forma mais sustentável” poderá potenciar uma filosofia de vida futura mais equilibrada. 

“Mudar mentalidades” é a grande esperança do professor e por isso insiste: “a pré-história tem ainda muito para ensinar às sociedades modernas”.

A imersão contou com nove participantes de cinco nacionalidades - Áustria, Alemanha, Espanha, Dinamarca e Portugal. A iniciativa também recebeu uma equipa alemã de televisão que realizou filmagens para um documentário a emitir no canal da cultura europeia, ARTE. Essas gravações irão integrar um programa dedicado à importância da investigação e experimentação em arqueologia dos modos de vida ancestrais e a sua utilidade na sociedade atual.

Vídeos: Imagem e edição de Carla Quirino

Tópicos
pub