Mulheres que contam. Sandra Saleiro

por Silvia Alves - RTP

Sandra Saleiro interessou-se pela Sociologia porque teve essa disciplina no ensino secundário - fascina-a o modo como a sociologia explica o mundo, mas lamenta que, atualmente, a oferta no ensino secundário seja cada vez menor.

A sua tese de licenciatura versou sobre a canção de intervenção (tem horas de entrevistas com José Mário Branco e Sérgio Godinho, entre outros cantores). Ainda durante a licenciatura integrou uma equipa do ISCTE que avaliou os primeiros programas comunitários dirigidos à área social e, dentro desse conjunto de projetos, integrou a equipa de avaliação da fase experimental do Rendimento Mínimo Garantido, antes de entrar em vigor como uma política pública geral. Permitiu-lhe observar a vulnerabilidade das populações em situação de pobreza e exclusão social e identificar algumas especificidades no impacto da pobreza sobre as mulheres.

Mais tarde, tendo já trabalhado as questões de género, sobretudo no que às mulheres diz respeito, Sandra Saleiro chega às questões da identidade de género, sobretudo de identidade de género fora do cis-género, ou seja, fora daquilo que é identificarmo-nos com o género que socialmente nos atribuem, face ao nosso sexo biológico, que depois é registado. E, de facto, não havendo, mesmo a nível internacional, muito trabalho nessa área, achou que seria um bom objeto de estudo.

Observou que, sempre que se falava destas questões na Comunicação Social, parecia que não havia “condições para que quem estava a ouvir conseguisse compreender aquilo que as pessoas trans estavam a dizer. Lembro-me de um programa que fiquei religiosamente a ver, em que convidaram algumas pessoas trans, e que depois o programa acabou com um show lésbico (!) e, portanto, havia muita confusão. De facto aquilo que as pessoas estavam a dizer não estava a ser compreendido”.

Sandra Saleiro decidiu contribuir para a literacia trans. Fê-lo escrevendo a primeira tese de doutoramento sobre a temática da identidade de género em Portugal. 

Tal como com as pessoas cis (em que a identidade de género corresponde ao sexo biológico), entre as pessoas trans, as que demonstram a feminilidade são as mais discriminadas. Entrevistou dezenas de pessoas trans para a sua tese de doutoramento, muitas mulheres trans, inclusive mais velhas, que viveram durante décadas a clandestinidade de género.

Apesar de a lei portuguesa ser das mais progressistas nestas matérias, “é preciso criar todo um quadro de políticas públicas que efectivem essa igualdade que está na lei”.

Deixou de se olhar para as questões de género como algo patológico. A lei da auto-determinação da identidade de género consagra o princípio da auto-determinação: cada pessoa é soberana para a definição da sua identidade de género, deixando de passar por um crivo médico.

Sandra Saleiro sublinha que, “apesar de o sexo biológico ser um bom preditor da identidade de género, não é um preditor que funciona sempre”.
 
É necessário repetir: ”a nossa identidade de género não está nos nossos órgãos sexuais, a nossa identidade de género está naquilo que nós somos, e sentimos que somos, independentemente dos nossos órgãos sexuais”.


“Eu acho que a área em que eu trabalho é a área do género, é tão importante falar das questões da igualdade entre mulheres e homens, ainda que mesmo nesta perspectiva binária, porque ainda é necessário falar disso. E, paralelamente, tentar desconstruir isso e tentar ampliar aquilo que é o género, e tentar incluir, nomeadamente, as pessoas não binárias dentro destas questões de género, porque ainda nem sequer temos adquirida esta igualdade numa perspectiva mais binária.

Temos muitos desafios: aquela questão da ideologia de género é um desses desafios. Aquela narrativa de que a desigualdade é não ideológica, é natural, é como sempre foi, que não tem uma ideologia implícita, não tem a ideologia da desigualdade implícita. E, quando nós queremos reivindicar a igualdade – seja igualdade entre homens e mulheres, seja os direitos das pessoas LGBTIQ+ - que aí é que estamos a ser ideológicas.
 
Mas a ideologia está em tudo. A ideologia está no modo como as sociedades se organizam. Nós podemos é ter uma ideologia igualitária, ou uma ideologia que intencionalmente abraça a desigualdade, e acha que a desigualdade é que deve ser o futuro, assim como foi o passado das sociedades.

Temos realmente este desafio, esta desconstrução para fazer, que junta os meios conservadores e populistas, portanto, é um grande desafio que temos para o futuro: tentar esbater esta dualidade que temos na nossa sociedade, e noutras, que é avançar – e vê-se isso muito nas novas gerações – desconstruir estas ideias feitas, ter perfeitamente incorporadas as questões da igualdade e a questão dos direitos para todas as pessoas e, depois, ter um outro grupo, uma outra facção na sociedade que está constantemente a rebater e a desinformar, relativamente a estas questões. Não continuarmos a ter sociedades tão polarizadas, até nas novas gerações.

E, nesse sentido, era mesmo importante que esta lente, esta consciência de género fosse incorporada na educação e no nosso sistema de ensino, para não se continuar a perpetuar estes preconceitos e esta desinformação. Teria de haver um olhar, por exemplo, para os currículos e ver em que medida não estão a reproduzir os estereótipos de género, e isso é muito fácil. Não é preciso haver matérias propositadas ou haver projectos para esse efeito. O que era precisa era aquilo que nós designamos de mainstreaming de género, ou seja, a transversalidade de género, e perceber se aquele problema de matemática que diz que o João está a jogar à bola com o pai, e a Maria está a ajudar a mãe a fazer o jantar, se nós não podemos colocar este problema, sem tocar nos aspectos técnicos da Matemática, de outra forma. Se não podemos representar os meninos e as meninas em figuras com uma maior diversidade de expressão de género – isso seria essencial para uma mudança mais estrutural em termos das questões de género.”

Sandra Saleiro propõe algumas leituras femininas, até para abrir o leque de perspectivas:


Igualdade de género, precisa-se
, também no meio académico. Nota Sandra Saleiro que, nos ciclos de conferências, são chamados maioritariamente, se não exclusivamente, homens. “As mulheres estão maciçamente na educação, nas profissões de educação, aliás são 99,9% das educadoras de infância, e essa situação da maior presença das mulheres só se reverte quando chegamos ao ensino universitário, em que continua a haver mais homens do que mulheres, mais homens catedráticos. Também é quem mais é chamado como perito em determinados assuntos. Estando eu na área das Ciências Sociais, que também é uma área bastante feminizada, é sempre com algum espanto que se vê perpetuar esta predominância de homens na pele de keynote speakers e estatutos desse género.

Há muitas outras coisas na universidade. Uma vez fiz o exercício de olhar para a bibliografia das UCs (unidades curriculares) e ver, na bibliografia recomendada, quanta bibliografia havia com autoria de mulheres e homens - a predominância dos homens era esmagadora, e não estamos a falar só das teóricas sociológicas clássicas, porque aí até podia ser mais ou menos expectável. Estamos a falar de outras sociologias mais especializadas e que não há, de facto, uma boa razão para isso acontecer, a não ser a naturalização de que quando se pensa em alguém – perito ou perita – pensa-se num homem.

As mulheres estão em maioria no ensino superior, já são a maioria das pessoas no ensino superior em Portugal, mas ainda estão longe de ser a maioria nos cargos de poder.”
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