"Victory City". Salman Rushdie falou com a RTP sobre o seu romance mais recente

por Ana Daniela Soares - RTP

Ainda a recuperar do ataque de que foi vítima, logo nos primeiros minutos de conversa percebemos que Salman Rushdie não perdeu o sentido de humor que o caracteriza e que está presente nos seus livros. "Victory City", o romance mais recente, a publicar em Portugal em novembro, foi o mote para a conversa. Afável e bem-disposto, no final da entrevista ainda incitou a jornalista a levar com ela os livros que quisesse.

Ao longo das páginas do romance Victory City, o autor de origem indiana vai encantando o leitor com a história da criação e queda de Bisnaga, uma civilização fundada por uma menina-rapariga-mulher possuída por uma deusa que apenas pretende criar uma sociedade livre e justa. Os homens tratarão de lhe trocar as voltas. Exceção para dois portugueses negociantes de cavalos. Afinal, como escreve Rushdie no livro, “os portugueses são honrados e de confiança”.

Se dos perdedores não reza a história, dos vencedores também não, ou talvez... se os escritores assim o entenderem. Afinal é deles a última palavra. É a convicção de Salman Rushdie manifestada logo no início da conversa que decorreu na semana passada em Nova Iorque.

Quando os líderes morrem, fica apenas o que foi escrito sobre eles. “É maravilhoso como os escritores que têm tão pouco poder durante a sua vida, ficam tão poderosos”, afirma Salman Rushdie. Moduladores do passado e da memória tal como a personagem principal do livro Pampa Kampana, que é quem escreve a crónica da criação e queda de Bisnaga, uma cidade a que se recusa a chamarmos de Victory City.

Em criança, Pampa Kampana perde a mãe que morre imolada numa fogueira com outras mulheres. A partir daí é possuída por uma deusa, uma bênção e uma maldição. A sua missão será criar um mundo igual e justo onde as mulheres não têm de morrer nas fogueiras quando ficam viúvas. “As mulheres do livro - e estou feliz por o dizer - são muito mais interessantes que os homens”, afirma Salman Rushdie.Criar uma sociedade justa e livre não é tarefa fácil, sobretudo por causa dos homens. “Não é só no século XIV, hoje também. Uma das coisas que está a acontecer na India hoje é que as jovens mulheres querem ser livres e o resultado é o aumento do número de violações. A violação está a ser usada como arma para dizer às mulheres para ficarem no seu lugar”.

Depois de vários livros baseados na América, Victory City marca o regresso do escritor ao país natal, mas a uma região diferente da que nasceu.

Rushdie cresceu em Bombaim e passou mais tempo no norte da India e no Paquistão, mas fez algumas viagens pelo sul. Deslumbrado com as ruínas Vijayanagara, Rushdie sempre acalentou o desejo de escrever sobre o local. Levou quase metade da vida para o concretizar.

“Os meus outros livros foram tentativas para tentar compreender este país louco que é a América. Chegou o momento de dizer chega de América! Agora vou escrever algo que nunca tinha escrito. Foi assim que surgiu este livro”.

A determinada altura, uma personagem diz a outra que a pior coisa que se pode fazer a um inimigo é perdoá-lo. “Porque ele não sabe o que fazer com esse perdão”, acrescenta Rushdie. “Se alguém foi horrível contigo e tu lhe perdoas, eles não sabem qual é o seu lugar. Não vou dizer nomes, mas isto tem acontecido comigo toda a minha vida. É muito poderoso perdoar alguém”.
"Os impérios erguem-se, os impérios caem"

Será o destino dos homens destruírem-se, desaparecerem? “Os impérios erguem-se, os impérios caem e temos de reconhecer que ambos fazem parte da história da humanidade. Há momentos em que a cultura é rica e o mundo é um bom lugar e depois o contrário”. E acrescenta: “Agora não é um bom lugar, não neste país. Porque é um país poderoso. Tudo o que acontece aqui afeta o resto do mundo. Quando cai nas mãos de pessoas terríveis, temos de temer pelo futuro”.

As eleições, o voto são as armas disponíveis para combater este estado de coisas. “Temos de os vencer”, afirma Salman Rushdie. “Especialmente com o ataque aos Direitos Humanos, como esta legislação sobre o aborto, tem havido um número enorme de mulheres que não querem votar nos republicanos. Vamos ver. O problema é que o presidente Biden é muito velho”.

Talvez seja a vez de uma mulher, mais jovem, talvez negra? “Não me parece que este país esteja preparado para isso. Ainda está a aprender a tolerar um homem negro”.

Em vários Estados americanos, alguns livros estão a ser banidos das bibliotecas. Bibliotecários temem processos judiciais. Um fenómeno difícil de compreender nos dias de hoje para o qual Salman Rushdie tem resposta: “Há pessoas loucas a governar certos estados, sobretudo na Florida. Espero que seja um fenómeno de curta duração porque há vários argumentos que afirmam que banir livros é contra a 1ª Emenda da Constituição. É inconstitucional. Espero que os tribunais acolham esta ideia”.
"Sou um admirador de Pessoa"

No livro Victory City, duas personagens masculinas são portuguesas. Pampa Kampana, a protagonista, apaixona-se por ambos. “É verdade que houve dois importantes viajantes portugueses que visitaram o Império Vijayanagara. Eles chamaram-lhe Bisnaga como eu chamei no livro. Os textos que escreveram mostram como era a vida do dia-a-dia. Li os dois livros cuidadosamente e pensei que os queria no livro. E ela apaixona-se por eles”.

No livro estas personagens são negociantes de cavalos, o que também aconteceu na realidade. Compravam cavalos nos países árabes e traziam-nos para Goa.

Membro do Conselho Honorifico do Espaço Atlântida, dirigido pelo bibliófilo Alberto Manguel, Salman Rushdie confessa gostar muito de Portugal, onde já esteve várias vezes. “Na minha última visita fui ao café preferido de Pessoa onde existe uma mesa e acima um chapéu pendurado e eu pude sentar-me nessa mesa. Sentei-me debaixo do chapéu de Pessoa. Sou um admirador de Pessoa, de todas as suas versões. Ricardo Reis é extraordinário”.

Nestes tempos turbulentos, afinal o que pode fazer um escritor? A resposta é rápida: “É fazer o registo. O futuro irá lê-lo. É o nosso superpoder. Se pensarmos em escritores que foram perseguidos: o poeta Ovídio foi exilado pelo Augusto César para o Mar Negro, mas a poesia de Ovídio sobreviveu ao Império Romano. Lorca foi morto pela Falange mas a poesia de Lorca sobreviveu ao fascismo. Os escritores podem sobreviver a quem se lhes opõem”.
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