Cinco anos de segredo

“Não foram tiradas notas nas reuniões com a Câmara do Comércio dos Estados Unidos, com a indústria farmacêutica, o lobby da indústria de armamento, com o Citi e BMW?”.

No início de 2014, o Corporate Europe Observatory (CEO) recebeu da Comissão Europeia 44 documentos relativos a mais de uma centena de reuniões. Face ao escasso número de textos disponibilizados, o CEO deixou uma pergunta: “Não foram tiradas notas nas reuniões à porta fechada com os lobistas, por exemplo, da Câmara do Comércio dos Estados Unidos, da federação industrial alemã BDI, dos grupos CEFIC e VCI, da união de indústria farmacêutica EFPIA, da DigitalEurope, do Conselho Empresarial Transatlântico, do lobby da indústria de armamento ASD, da Associação Britânica de Banqueiros e grupos como o Lilly, Citi e BMW?”.

Muitos destes papéis foram pedidos ao abrigo do direito à informação (FOI, acrónimo em inglês para Freedom of Information) e acesso a documentação relativa aos tratados da UE, determinado pela regulamentação de 1049/2001.

Os encontros preparatórios mantiveram-se, contudo, abrigados do conhecimento público, com muitos dos papéis a serem enviados ao CEO sob forte censura.

Parágrafos inteiros tinham sido rasurados. “NOT RELEASABLE”, “DELETED”, “NOT RELEVANT” (não divulgável, apagado, não relevante) escrito à mão ou em etiquetas dactilografadas justificavam as extensas manchas a negro sobre o texto de grande parte dos documentos. Uma mancha gráfica que remete para outras latitudes.

As justificações estavam nos anexos igualmente enviados ao grupo ativista CEO, referindo-se ao apagamento de cada parágrafo, de cada frase ou palavra: “Revelar esta informação poderia ter um impacto negativo na empresa x e prejudicar a sua posição no mercado americano/europeu”; “revelar… colidiria com a proteção a que estamos obrigados por lei no que diz respeito à privacidade individual”; “revelar esta informação poderá ter um impacto negativo na Euratex, ou na posição dos seus membros no mercado americano”; “estaríamos a ir contra a proteção individual e comercial devida por lei a uma pessoa natural ou legal”.



Apesar do negro e branco que ocultou a informação considerada sensível pela equipa da Comissão Europeia, o CEO sublinhava que do texto disponível se podia - já então - deduzir que a eliminação das diferenças entre a UE e os Estados Unidos é o ponto-chave do acordo, com a grande parte das reuniões a versarem aquilo que é visto como “barreiras regulatórias”. Em perigo, face a esta agenda, alertava o CEO, ficam os padrões de segurança e legislativos da Europa, que assim são puxados para baixo, ao nível do que é a prática legislativa norte-americana no retalho, nos serviços, na indústria, na saúde.

Ninguém obrigará os atores europeus a baixarem os seus padrões de qualidade atuais. Pelo contrário, teme-se que sejam eles próprios - antes da finalização de um quadro regulatório comum - a optar por esse relaxamento na qualidade dos produtos e dos serviços face a um quadro competitivo aberto aos americanos, dispostos a tudo para produzir mais barato, seja a que custo for.
A última palavra é a primeira?

No caso deste documento que chegou às mãos do CEO, estavam as linhas respeitantes ao capítulo das negociações que versa a “cooperação para a regulamentação”. De Bruxelas asseguravam na altura que se tratava apenas de simplificar processos. O CEO não engoliu a justificação e advertiu para a teia que se estava a montar e que de futuro tolherá qualquer iniciativa da União Europeia vista pelos norte-americanos como prejudicial aos seus interesses.

A caminho, avisava, está a abertura de um corredor para as grandes multinacionais americanas no sentido de poderem avançar com “propostas substanciais” para a agenda de Bruxelas. Talvez seja essa a razão por que os movimentos anti-TTIP adotaram a imagem do Cavalo de Troia para ilustrar o tratado. O problema é que os europeus não têm sequer uma Helena para amostra, como confirmam os Leaks da Greenpeace.



O CEO advertia então para essa realidade planeada à porta fechada, um futuro em que os reguladores americanos (mais liberais em termos de segurança, regulamentação e certificação científica) terão garantido um “papel inquestionável” na cena legislativa de Bruxelas e de Estrasburgo.

É nesse sentido que um dos investigadores do CEO, Kenneth Haar, avisa contra o “abrir a porta à influência dos grandes negócios” e transformar a Europa num continente vergado aos objetivos da UE e Estados Unidos, “para colocar os grandes negócios no centro da tomada de decisão”, a derradeira ameaça à democracia.

Bruxelas ainda chegou, na altura, a ensaiar uma defesa. Declarou um porta-voz da Comissão Europeia que “as acusações são infundadas e não estão refletidas nas propostas da UE, que procura simplificar as regras para os seus exportadores. O texto que visa a cooperação para a regulamentação será publicado em breve para que todos percebam que esta análise é completamente falsa, apresenta uma visão parcial do trabalho da Comissão Europeia e ignora a realidade dos documentos da UE”.

Falou cedo demais, dirão uns, tarde demais, dirão outros. Como veio a verificar-se nos documentos entregues à Greenpeace, raramente o discurso público de Bruxelas coincide com a posição assumida no texto das negociações.