O Cavalo de Troia a cavalgar Estrasburgo

Estamos na prática perante um cenário expectável em que as grandes companhias desafiam as leis criadas por um Estado por serem vistas como ameaça aos seus lucros.

Um dos capítulos dos Leaks - "Regulatory coherence, transparency and other good regulatory practices" - denuncia o desejo dos americanos de colocar a regulamentação de todos as questões (ambientais, de saúde e de segurança) sob a bitola comercial: “No desenvolvimento de regulamentação, uma autoridade reguladora de uma das partes deve ter em conta qualquer informação que chegue da outra parte ou de uma pessoa da outra parte acerca dos potenciais efeitos dessa regulamentação na sua componente negocial”.

Estamos na prática perante um cenário expectável em que as grandes companhias desafiam as leis criadas por um Estado por serem vistas como ameaça aos seus lucros.

No mesmo capítulo esta é uma prioridade posta por escrito repetidas vezes:
“Ao preparar atos com vista a regulamentação (…) deve ser oferecida a oportunidade a qualquer pessoa singular ou colectiva (…) de oferecer as suas contribuições (…) e deve ter em conta essas contribuições na finalização dos actos normativos”.

Ou “(…) a parte que está a regulamentar deve assegurar que qualquer pessoa, independentemente do seu domicílio, tenha oportunidade (…) de submeter observações sobre essa norma”.

Entra aqui em jogo um princípio que o Tratado não deverá deixar de contemplar: notice & comment procedure. O princípio de que a atividade legisladora deverá obedecer a uma transparência total a cada etapa do processo. Com vista à possibilitação de uma contribuição dos players, procura-se que sejam publicitados os projetos de regulamentação, mas não só, que sejam igualmente realizados estudos de impacto com vista a abrir a porta à proposta de alternativas.

François Lenoir - Reuters

Os negociadores visam dessa forma traçar um futuro em que as leis dos dois lados do Atlântico possam convergir para um mesmo ponto de fuga.

Estes são assuntos que estão umbilicalmente ligados a uma prática antiga igualmente acarinhada pelos norte-americanos: o ISDS - Investor-State Dispute Settlement (mecanismo de resolução de conflitos investidor-Estado). Estamos a falar de um território antigo - o ISDS remonta a cerca de 1966 - em que é permitido às companhias processarem os países onde operam por perda de lucro – perdas presentes ou futuras – e de espaço de manobra para as suas estratégias.

O ISDS foi herdado de forma natural pelo TTIP, passando – de acordo com as primeiras fugas de informação - a ser trabalhado no anexo do acordo "Resolução de litígios investidores vs Estado". Transpunha-se desta forma para o tratado a possibilidade já experimentada de as grandes transnacionais virem a interpor recurso contra os Estados por violação de direitos. Leia-se lucros. Violação de direitos dos trabalhadores? O que esteve em causa no Egipto, num processo da multinacional francesa Veolia, foi o facto de o governo ter decretado o aumento do salário mínimo. São, portanto, em última instância, o trabalhador e o contribuinte as vítimas destas disputas.

Caso o acordo venha a ser ratificado em Estrasburgo, estaremos perante um cenário que permite às empresas evitarem os tribunais nacionais do Estado com o qual entraram em litígio, remetendo qualquer disputa para um tribunal arbitral. Estes tribunais, onde não há juiz, surgiram como um antídoto, p. ex., face a expropriações ou nacionalizações contra as quais as multinacionais ficariam indefesas e sem capacidade de contestação. São ainda hoje apresentados como uma fórmula para promover e garantir o crescimento económico, na medida em que reduz os riscos do investidor.

Os Estados, por seu lado, face à fragilidade da posição em que são colocados, procuram evitar os processos em que as grandes empresas entram na arbitragem com equipas de super-advogados. Os poucos casos que penderam para o Estado revelaram-se tão longos e de custo tão elevado que a opção é estancar o problema a montante.
Multinacionais legisladoras

Estancar o problema a montante. Mas os críticos do TTIP dizem que é precisamente essa a questão: estancar o problema é o que não está a acontecer nas negociações entre Bruxelas e Washington.

Antes dos Leaks da Greenpeace, já um documento chegado às mãos do grupo activista Corporate Europe Observatory (CEO) e do jornal britânico Independent, fruto de uma primeira fuga das reuniões secretas que vêm decorrendo para apurar o desenho final do TTIP, apontava para esse futuro de oportunidades imensas e ganhos dos norte-americanos. Um acordo escudado na imagem de uma cooperação inevitável, mas com um sem-número de perigos nas áreas alimentar, da saúde, da banca, do comércio e do ambiente.

Perigos encontrados na raiz da decisão. Nick Dearden, diretor do grupo Global Justice Now, alertava então: “A fuga de informação confirma totalmente os nossos maiores receios acerca do TTIP. Trata-se de entregar aos grandes negócios mais poder sobre um ampla variedade de leis e regulamentos. Na verdade, os lobistas das empresas foram ouvidos e registados a afirmar que a sua pretensão é ajudar a escrever as leis conjuntamente com os governos. E isto não é uma adenda ou um pormenor do TTIP, é absolutamente central no acordo”.

Numa declaração de março passado, Dearden abordou esse cenário assustador em que os norte-americanos terão o poder para fazer emendas e adendas às regulamentações europeias antes mesmo que políticos eleitos tenham a possibilidade de as debater. O veículo será o Conselho de Cooperação para a Regulamentação, composto por membros não-eleitos, capaz de criar e substituir a legislação da UE, e que a Comissão de Comércio do Parlamento Europeu pretende instituir para manter o TTIP como um “acordo vivo”, capaz de regular para o futuro.

No capítulo dos Leaks em que se dá conta do estado das negociações, a parte americana exige o que se pode chamar de máxima transparência à Europa. Não garante, no entanto, que esta seja uma porta que abre para os dois lados: “Os Estados Unidos insistiram no seu pedido à comissão para que a respeito do pedido de padronização (standardization) ‘exija’ que a CEN (European Committee for Standardization, Comité Europeu para a Estandardização) e a CENELAC (European Committee for Electrotechnical Standardization, Comité Europeu para a Estandardização Electrónica) envolvam especialistas americanos no processo de desenvolvimento de padrões (sem garantia de reciprocidade) como condição para fazer referência a normas harmonizadas”.

São indícios que começaram a emergir em 2012 dos poucos documentos libertados pela Comissão Europeia relativos às negociações que envolvem um número indeterminado de atores, desde lobistas a representantes da União e líderes da indústria americana.