Tratado Transatlântico - O que sabemos nós do que aí vem

O TTIP, acrónimo para Parceria Transatlântica para o Comércio e Investimento entre outras traduções, surge como um complemento aos tratados negociados entre os Estados Unidos e 11 países da região da Ásia-Pacífico (TTP) e da própria União Europeia com o Canadá (CETA), tendo em vista integrar o Continente Europeu na forja da maior região de comércio mundial para as próximas décadas.

Vistas desta forma, as negociações iniciadas em janeiro de 2012 entre os dois lados do Atlântico (na realidade encontros preparatórios, dado que a primeira reunião ocorreu em julho de 2013) surgem como uma etapa natural, já que UE e Estados Unidos representam 800 milhões de habitantes/consumidores, pouco menos de 50 por cento do PIB mundial, 33 por cento do fluxo global de mercadorias e 42 por cento da prestação de serviços.
"Em nome das multinacionais"
Tal como o acordo com o Pacífico, também o acordo com a União Europeia visa suprimir todas as barreiras alfandegárias e regulamentares entre os Estados Unidos e o Velho Continente. Os opositores temem a desregulação generalizada e um recuo do espaço de manobra dos governos.

Os argumentos da Comissão Europeia para se sentar à mesa com Washington vão nesse sentido: o acordo impulsionará a nossa economia em 120 mil milhões de euros (90 MM para os EUA e 100 MM para o resto do mundo).

Para qualquer início de discussão sobre o tema, o TTIP é apresentado como um acordo que visa não tanto a remoção de barreiras alfandegárias mas antes a harmonização do quadro legal para o comércio entre os dois lados do Atlântico. Por outras palavras, terraplanar as barreiras não-pautais, em linguagem corrente, diferenças de legislação.

A primeira ideia com que se fica neste cenário é que o rascunho do acordo não está de facto a ser discutido à mesa entre europeus e americanos. O facto de haver quase uma década de negociações e um desenho assente do TPP, finalizado em Outubro de 2015, leva a crer que os negociadores sabem de antemão ao que vêm. Em última e primeira instância: maximizar o lucro e pelo caminho passar com um cilindro por cima da tradição democrática europeia, legislação ambiental e sanitária e, também, fazer tábua rasa nos serviços públicos e direitos de cidadania.

Então e nós - os cidadãos europeus no centro do alvo - sabemos o que pretendem estes negociadores? Com o nivelamento das legislações dos dois lados do Atlântico, do que se trata efetivamente é do desenho de uma legislação inteiramente nova em que o Velho Continente abrirá a porta à tábua regulamentar americana, por norma mais permissiva que as legislações europeias. A cereja em cima do bolo é a capacidade que as grandes empresas americanas deverão garantir para futuramente condicionarem a atividade legisladora dos burocratas de Bruxelas.

Feisal Omar - Reuters

Uma vez que se pretende nivelar a legislação para níveis mais permissivos, o que está para vir é de facto um passo atrás em décadas de conquistas democráticas, com a previsível degradação das leis para a saúde, controlo alimentar, mercado laboral, ambiente e serviços financeiros. Novos padrões que colidem também com as questões da liberdade e da privacidade. Tudo em nome de um lucro maior.

Mas os problemas com a negociação do acordo não nascem apenas do facto de estarem em jogo os interesses dos cidadãos contra a lei da maximização de lucros. O TTIP começa por levantar suspeitas desde logo face ao carácter secretista que envolveu estes quatro anos de negociações.

Recentemente, o principal negociador norte-americano para a parceria surgia na CNN com uma resposta pronta para todas as questões do jornalista: “Não posso adiantar-lhe nada sobre isso; garanto-lhe apenas que será muito bom para a América”. Este otimismo constitui por si razão suficiente para que o acordo venha levantando todas as reservas deste lado do Atlântico.

Entretanto, não é apenas o secretismo das negociações que faz fincar os pés atrás, como igualmente o seu contrário: as fugas de informação que até há pouco constituíam a única fonte sobre os textos do documento apontavam desde logo para o primado do mundo empresarial e um inegável ganho de espaço do mundo do negócio e das finanças sobre tudo o resto, incluindo decisores políticos, instituições democráticas e garantias dos cidadãos.

E de nada parece valer que aos Estados-membros da União que o Tratado de Lisboa tenha constituído na Comissão Europeia um contraforte para garantir a defesa dos seus interesses em negociações futuras.

Este preceito do tratado europeu abriu a porta para que em 2011 fosse constituído um grupo de trabalho incumbido de definir os termos do grande acordo de comércio livre com os Estados Unidos. Uma task-force liderada do lado norte-americano por um representante comercial, Ron Kirk, um membro do Partido Democrático e da equipa do Presidente Barack Obama; a equipa europeia tinha à frente Karel de Gucht, comissário da UE para o Comércio. Cinco anos volvidos, pouco se sabia até finais de abril das conversas que foram sempre mantidas à porta fechada.

Fabrizio Bensch - Reuters

Até dia 1 de maio todos os documentos resgatados a esse silêncio eram vistos pelos activistas anti-TTIP como ouro puro. Até dia 1, quando uma fonte forneceu à Greenpeace holandesa 248 páginas de documentação correspondente a 13 dos 17 documentos em cima da mesa, muitos deles já na sua formulação final.

Os textos do TTIP estão a ser preparados por 24 equipas divididas por áreas, integrando membros europeus e americanos.

  • 1ª ronda: Washington entre 7 e 12 de julho de 2013
  • 2ª ronda: Bruxelas entre 11 e 15 de novembro
  • 3ª ronda: Washington entre 16 e 21 de dezembro
  • 4ª ronda: Bruxelas entre 10 e 14 de março de 2014
  • 5ª ronda: Arlington, Virginia, entre 19 e 23 de maio
  • 6ª ronda: Bruxelas entre 13 e 18 de Julho
  • 7ª ronda: Chevy Chase, Maryland, de 29 de setembro a 3 de outubro
  • 8ª ronda: Bruxelas entre 2 e 6 de fevereiro
  • 9ª ronda: Nova Iorque entre 20 e 24 de abril
  • 10ª ronda: Bruxelas entre 13 e 17 de julho
  • 11ª ronda: Miami entre 19 e 23 de outubro
  • 12ª ronda: Bruxelas entre 22 e 26 de fevereiro
  • 13ª ronda: Nova Iorque de 25 a 29 de abril
Defesa ou traição dos interesses da velha Europa
No Tratado de Lisboa vem escrito que, “nas suas relações com o exterior, a União Europeia defende e promove os seus valores e interesses e contribui para a proteção dos seus cidadãos [bem como] o comércio livre e justo, erradicação da pobreza e proteção dos Direitos Humanos (ponto 5 do Artigo 3).

Diz também que “a UE tem competência exclusiva para a conclusão de um acordo internacional, quando essa conclusão for providenciada por um acto legislativo da União ou se torne necessário capacitar a União para exercer a sua competência interna (…) quando a sua conclusão possa afectar as regras comuns ou ainda alterar o seu alcance (ponto 2 do Artigo 3 do Tratado de Funcionamento da UE).

“Por um ato legislativo” não deveria ser uma mera formulação sintática, mas é esta a ideia com que ficamos após a leitura do texto mais ou menos encriptado das 248 páginas que foram parar às mãos da Greenpeace. O acto de legislar deixa de pertencer ao mundo dos legisladores escolhidos em processo democrático para passar para as mãos dos interesses económicos.

Fabrizio Bensch - Reuters

A Greenpeace abriu desde logo o acesso ao conjunto de documentos que verteram de dentro da sala de negociações pela mão de uma fonte anónima. Para a organização tratava-se aqui de pugnar pela transparência e pelo debate informado de um acordo que afeta a vida de “quase mil milhões de pessoas nos Estados Unidos e na União Europeia”.

“Chegou a hora de lançar alguma luz sobre as negociações. Um progresso ambiental arduamente conseguido está a ser vendido à porta fechada. Estes documentos revelam que a sociedade civil tinha razão em estar preocupado com o TTIP. Devíamos parar as negociações e iniciar o debate. A versão mais recente e completa do texto do tratado deve ser libertada de uma vez, para que cidadãos e representantes eleitos tenham a oportunidade de entender o que está a ser proposto em seu nome”, declarou Faiza Oulahsen, da Greenpeace Holanda.

Até agora, os documentos apenas podiam ser lidos pelos membros do Parlamento Europeu em condições de absoluto constrangimento: sob escolta, numa sala com segurança, sem auxílio de peritos e sob o juramento de não discutir o seu conteúdo após a consulta. Não se exigiu a nudez dos deputados europeus, mas o striptease da democracia estava já por todo o lado.