Marisa Matias. Vencer Belém para salvar a Saúde e romper com os privilégios

Feminista, defensora dos Direitos Humanos e laborais e de um regime político que acabe com os privilégios. Assim se assume Marisa Matias, a candidata presidencial apoiada pelo Bloco de Esquerda, que promete ser fiel aos seus princípios e ajudar a recuperar o país da crise trazida pela pandemia de Covid-19. A força do seu programa é a democracia e a sua grande motivação o reforço do Serviço Nacional de Saúde: um "bem essencial" para o qual garante lutar com toda a força que tiver, quer vença a corrida a Belém, quer não.

Foi na pequena aldeia de Alcouce, em Coimbra, que há 44 anos nasceu Marisa Isabel dos Santos Matias. Lembra-se de ter visto chegar àquele lugar a eletricidade, a água e o telefone. “Foi uma infância muito feliz, muito comum a muita gente da minha geração”, contou recentemente a recandidata presidencial, em entrevista ao projeto apartidário “Os 230”.

Filha de um guarda-florestal e de uma empregada de limpeza, Marisa Matias não esquece o valor da família na sua vida. “São o chão e a asa. Estão sempre comigo e abraçam todas as lutas que eu abraço”, disse no discurso de apresentação de candidatura às presidenciais de 2021.

Já na campanha eleitoral de há quatro anos, quando se estreou como candidata presidencial, tinha frisado que a gente da sua aldeia “é gente de trabalho e de não desistir”, admitindo que é a essas pessoas e à sua família que deve muito do que aprendeu.

Uma das personalidades mais influentes nessa aprendizagem foi Álvaro Febra, o comunista da aldeia de Alcouce, a quem os amigos costumavam chamar “Álvaro Cunhal”. Ainda criança, Marisa Matias falava horas a fio com este homem numas escadas junto à casa dos avós.

“Ele ensinou-me muitas coisas sobre a política, sobre a ditadura, sobre a resistência antifascista”, quando era ainda “uma miúda pequena”, contou a candidata bloquista ao projeto “Os 230”, confessando que Álvaro foi para si uma figura “muito importante”.

“Eu nunca militei nem nunca me senti propriamente entusiasmada ou decidida a abraçar a causa comunista, mas há valores que são comuns, e foram muito importantes os ensinamentos dele”, recordou.



Depois da inspiração de Álvaro na política, foi Boaventura Sousa Santos quem inspirou Marisa Matias a ingressar no curso de Sociologia, com o livro “Pela Mão de Alice”. A menina que em tempos caminhava cinco quilómetros para ir até à escola tornou-se, assim, a primeira da família a licenciar-se, na Universidade de Coimbra, depois de aos 16 anos ter começado a trabalhar para pagar os estudos.

Fez limpezas, serviu à mesa em bares e cafés e foi secretária da Revista Crítica de Ciências Sociais. “Todo o seu percurso académico foi feito enquanto trabalhadora-estudante”, lê-se na biografia da candidata à presidência, na página oficial da campanha.

Mais tarde veio a doutorar-se também em Sociologia, com a tese “A natureza farta de nós? Saúde, ambiente e formas emergentes de cidadania”.

Com uma mãe que sempre a ensinou a não pedir desculpa por ser mulher e lhe incutiu “uma exigência muito grande quanto ao tratamento igual”, a candidata assume-se “feminista, na teoria e na prática”.

Já em 2016, numa entrevista à associação feminista Capazes, Marisa Matias lamentava que Portugal nunca tivesse elegido uma mulher para presidente ou para primeira-ministra ao longo de mais de quatro décadas de democracia.

“A questão é estrutural. A distribuição do trabalho doméstico, os horários das reuniões, a inexistência de redes públicas pré-escolar que cheguem a todas as crianças, o modelo económico existente que se traduz em mais pobreza e mais desigualdade para as mulheres. Por onde começar? Por todos os lados. Todos os dias”, defendeu na altura.

Quatro anos mais tarde, assume que ser mulher numa área dominada por homens é complicado, mas desafiante.
O caminho até Bruxelas
Foi em 2004 que aderiu ao Bloco de Esquerda, aquele que considera o “projeto político-partidário mais completo que temos em Portugal”. “Apercebi-me que via no Bloco de Esquerda uma resposta política muito em linha com aquilo que eu defendia e, na realidade, desde que o Bloco de Esquerda existiu que eu não votei em outro partido”, confessou em entrevista ao “Os 230”.

Essas primeiras pegadas na política acabaram por levá-la até Bruxelas, onde em 2009 se tornou deputada ao Parlamento Europeu pelo Bloco de Esquerda, cargo que assume até hoje.

Apenas um ano depois tornou-se vice-presidente do Partido da Esquerda Europeia, função que cumpriu até 2019, ano em que foi eleita vice-presidente do Grupo da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde.
“Não podemos, de maneira nenhuma, cair na tentação de tentar fazer da imigração um caso de polícia, porque não o é”.
Enquanto eurodeputada diz ter visto muitos cenários “trágicos”, especialmente em situações relacionadas com refugiados e violação de Direitos Humanos, e orgulha-se de “ter feito trabalho que muda a vida das pessoas”.

Um desses trabalhos foi o combate aos medicamentos falsificados. Marisa Matias foi a segunda deputada portuguesa desde a adesão de Portugal à Comunidade Europeia a redigir uma diretiva desta natureza.

Em Bruxelas lutou ainda por melhores condições na área da saúde. Trabalhou numa estratégia de combate ao Alzheimer e outras demências, desenvolveu propostas de resolução relativas ao cancro e HIV-Sida e fundou o working group da diabetes.

Os Direitos Humanos têm sido outra preocupação para a bloquista. No Parlamento Europeu foi vice e, mais tarde, presidente da delegação para as relações com os países do Maxereque (Síria, Líbano, Jordânia e Egito). Esse trabalho tornou a sua voz ainda mais presente na defesa pelos direitos dos refugiados.


O combate à pobreza e à desigualdade de género, assim como a luta pelos direitos dos cuidadores informais, têm sido outros dos grandes desafios de Marisa Matias.

Foi a 9 de setembro de 2020 que, no Largo do Carmo, a eurodeputada e socióloga juntou dezenas de profissionais da primeira linha do combate à pandemia de Covid-19 para anunciar a sua candidatura às presidenciais de 2021.
“Luta pela igualdade, em todos os seus sentidos plenos”
“Esta é, mais uma vez, uma candidatura de pessoas à esquerda, que não baixam os braços e constroem soluções para o país”. Foi desta forma que Marisa Matias apresentou a sua candidatura, frisando que “a democracia é o que é de toda a gente, é a liberdade que cuida de toda a gente”. “É essa a força do meu programa”, avançou então.

“Seria lamentável que num país que tem ainda uma maioria - e espero que ainda por mais tempo - de centro-esquerda na Assembleia da República, (esta) não se faça representar devidamente nas eleições presidenciais”, disse, mais tarde, em entrevista à agência Lusa.

Ao projeto “Os 230”, explicou que a sua intenção é dar resposta à situação difícil que Portugal vive atualmente e recuperar o país. Relembrando que em 2016, quando foi pela primeira vez candidata às presidenciais, se vivia uma crise, Marisa Matias referiu que “neste momento a crise é mais recente, não sabemos quanto tempo mais vai durar e estamos longe ainda de saber quais são as consequências do ponto de vista económico e social”.

O seu modelo de combate às desigualdades “prevê acabar com o sistema de privilégios, prevê de facto uma justiça na economia, na sociedade, um modelo de redistribuição”, garantiu durante o debate com o candidato presidencial Marcelo Rebelo de Sousa.

“As desigualdades, para mim, não são um desvio das políticas que temos neste país. Para mim, as desigualdades são o centro das políticas que temos tido. São a regra, não são a exceção”, considerou.

A candidata apresenta, assim, uma proposta de “defesa dos serviços públicos, de uma luta clara e estratégica contra a precariedade e de uma luta pela igualdade em todos os seus sentidos plenos”, nomeadamente igualdade de género, questões relacionadas com minorias, racismo e discriminação, não esquecendo também a transição ecológica.

Todas essas lutas poderão, segundo a eurodeputada, ser feitas lado a lado com o Governo socialista. Em entrevista à RTP a um mês para o dia das eleições, a candidata assegurou que continua a haver espaço para negociações entre o Executivo e o Bloco de Esquerda.

Relembrando que apoiou o voto contra o Orçamento do Estado para 2021 por considerar que é um orçamento “fora de tempo” e que não reforça o Serviço Nacional de Saúde, Marisa Matias defendeu que “devemos estar na política com responsabilidade, ser fiéis aos princípios que defendemos, lutar por eles”.

Disse, no entanto, que o programa que apresenta às presidenciais “é um programa no sentido de tentar promover novos entendimentos à esquerda”, pois acredita que “não há saídas nem entradas definitivas”.

“Temos neste momento no Parlamento condições para termos acordos à esquerda e acordos ainda mais exigentes perante o momento que estamos a viver”, justificou a candidata apoiada pelo BE. “Precisamos de fazer um caminho permanente de negociação”.
Serviço Nacional de Saúde: o grande foco da candidatura
Marisa Matias não esconde que o principal foco da sua candidatura é muito concreto: salvar o Serviço Nacional de Saúde. “O Serviço Nacional de Saúde salva vidas todos os dias. Um serviço público de Saúde capaz de dar resposta é um bem essencial. Perguntem a quem vive em países onde esse serviço não existe”, diz a eurodeputada num vídeo gravado para a sua campanha eleitoral.

“A pandemia veio provar, uma vez mais, que os privados da Saúde não nos dão resposta quando mais necessários são. Essa resposta é o SNS e o seu reforço, como esta pandemia deixa bem à vista”, refere.

No primeiro comício digital no âmbito das presidenciais, a dirigente bloquista defendeu que não se pode esperar mais tempo para salvar o SNS. “É por isso que no centro da proposta política que apresento desta candidatura, no centro daquilo que me motiva desta candidatura, no centro do combate que travo todos os dias - e continuarei a travar depois desta candidatura, depois desta eleição, com a força que tiver, com a força que ela me der - está um contrato para a saúde”, assegurou.
“Desistir não faz parte da minha trajetória”.
Esse contrato pela saúde deve, segundo a candidata, “propor soluções estruturais e duradouras”, como o reforço do investimento público, o estímulo à dedicação plena dos profissionais do SNS e a valorização das carreiras dos profissionais de saúde.

Para além de criticar aquele que considera um crescente desinvestimento no SNS, Marisa Matias aponta o dedo ao Governo por recorrer cada vez mais a parcerias público-privadas.

“Não podemos aceitar de nenhuma forma que, na situação mais crítica que estamos a viver do ponto de vista da saúde pública (devido à pandemia de Covid-19), os privados achem que é uma oportunidade de negócio”, defendeu em entrevista à RTP. “Se os privados prestarem os serviços a preços de custo, ninguém está a retirar-lhes nenhum rendimento justo pelo trabalho que estão a fazer”.

Ainda na área da saúde, e tendo já um historial de luta pela saúde mental e pelos cuidadores informais, a bloquista acredita que “ainda temos de fazer um caminho enorme para combater a discriminação em relação à saúde mental”.

São áreas “muito invisíveis” e, muitas vezes, as pessoas que sofrem destes problemas, especialmente no caso das demências, “têm muita dificuldade em ser porta-vozes da sua própria condição, de reivindicar uma resposta para os seus problemas. Precisam sempre do apoio de outras pessoas”, pelo que “temos muito para fazer” nesse caminho, defendeu em declarações ao “Os 230”.
A TAP e o SEF
A pouco tempo do fim da campanha presidencial, Marisa Matias tem comentado alguns dos temas mais polémicos da atualidade portuguesa. Um deles é o caso da morte do cidadão ucraniano Ihor Homeniúk nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, em relação ao qual a candidata tomou uma posição clara: “é inaceitável que alguém perca a vida às mãos do Estado português”, disse à agência Lusa.

Em entrevista à RTP, criticou Marcelo Rebelo de Sousa por não ter prestado condolências à família de Ihor Homeniúk. “O presidente da República não disse uma palavra. Acho que é impossível nós termos uma situação de tortura, de morte de uma pessoa às mãos do Estado” sem que sejam expressadas condolências, afirmou.

Depois da polémica sobre uma eventual reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a sua fusão com a Polícia de Segurança Pública, Marisa Matias defendeu que a imigração não deve ser tratada como um caso de polícia, “porque não o é”.

Sobre o plano de reestruturação da TAP, a bloquista disse à RTP ter “várias preocupações” e acredita que “não ganharemos nada, depois de tudo o que foi investido na TAP, em ficarmos com uma empresa reduzida, menorizada, ou estarmos a investir com dinheiros públicos para depois se transformar numa adenda da Lufthansa”.

Precisamos de uma TAP adaptada aos novos tempos, uma transportadora que tenha em linha um programa claro de funcionamento que leve em linha de conta também o combate às alterações climáticas”, defendeu, acrescentando que não está ainda provado que seja necessário reduzir postos de trabalho para salvar a empresa.

Considerou ainda que a proposta de reestruturação devia ter ido ao parlamento, uma vez que é “importante nunca fazermos atalhos em democracia”.
As diferenças e semelhanças com os adversários às presidenciais
Não é só quanto ao caso de Ihor Homeniúk que Marisa Matias discorda de Marcelo Rebelo de Sousa. A candidata aponta também o Serviço Nacional de Saúde e o Novo Banco como matérias nas quais tem “posições radicalmente opostas” ao atual presidente.

Para além de o chefe de Estado ter elencado os “ruinosos” negócios do Novo Banco e mantido um “silêncio total” quanto à precariedade, também “se bateu pela manutenção das parcerias público-privadas”, o que terá enfraquecido o SNS em muitas dimensões, disse a eurodeputada durante um comício digital no âmbito das presidenciais.

Ainda assim, a candidata consegue estabelecer pontes entre si e Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente no que diz respeito às preocupações com os cuidadores informais e com as pessoas sem-abrigo, temas em relação aos quais o presidente tem sido “exemplar”.

Mas mais semelhanças encontra Marisa Matias com a candidata Ana Gomes, que diz ser sua amiga e alguém com quem partilhou uma luta em Bruxelas contra a evasão fiscal e o financiamento de offshores. Defesa de liberdades, de garantias e da democracia são outras das metas comuns às duas mulheres.

No entanto, segundo a bloquista, diferem em assuntos como a defesa dos serviços públicos, política orçamental europeia e política de Defesa. “Marcelo quer um regime político assente em mais do mesmo, eu quero um regime que responda à pandemia social e que acabe com os privilégios”.

Outro candidato de esquerda às presidenciais é o comunista João Ferreira, com quem Marisa Matias diz partilhar questões de defesa dos direitos laborais, de combate à precariedade e de defesa dos serviços públicos.

No entanto, diz ter com o candidato uma diferença em relação à visão do mundo, nomeadamente no que respeita à política internacional.

Mas é com André Ventura que Marisa Matias menos se identifica, dizendo mesmo não ver qualquer ponto em comum com o líder do Chega.

“Estamos a falar de um partido com uma agenda racista e xenófoba, estamos a falar de um partido com uma agenda totalitarista”, sublinhou a candidata na sua entrevista à RTP.

Por essa razão, a bloquista não esconde que nunca daria posse a um Governo formado pelo Chega, mesmo que a nível nacional acontecesse o mesmo que nos Açores, onde a coligação PSD/CDS/PPM chegou a acordo com o partido de André Ventura.
“Eu não daria posse a um Governo apoiado pelo Chega”.
“Um presidente da República tem o dever de proteger a Constituição e, de facto, eu acredito que nenhum presidente protege a Constituição quando dá posse a um Governo” do qual faz parte “um partido de extrema-direita”, disse à estação pública de televisão.

Já em entrevista à SIC a candidata tinha referido que André Ventura "traz para o século XXI ideias do século XIX”. “Acho que às vezes é mesmo a pedir para fazer esse combate, a pedir que alguém peça a ilegalização, a pedir que alguém o faça de vítima”, declarou.

Esta é a quarta vez que Marisa Matias protagoniza uma candidatura bloquista. As duas primeiras foram como cabeça de lista ao Parlamento Europeu, em 2014 e 2019, e a terceira como candidata do Bloco de Esquerda às presidenciais de 2016. Dessa vez ficou em terceiro lugar na corrida, com dez por cento dos votos.

Este ano são sete os candidatos a Belém: Ana Gomes, André Ventura, João Ferreira, Marcelo Rebelo de Sousa, Marisa Matias, Tiago Mayan e Vitorino Silva. Os portugueses vão às urnas a 24 de janeiro.