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A rendição da PIDE

por RTP
Inspector da PIDE discutindo a rendição com a força de fuzileiros, na Rua António Maria Cardoso. DR

A revolução desmantelou a PIDE e hoje parece óbvio que só podia ser assim. Mas no dia 25 de Abril o movimento dos capitães não tinha atribuído no seu plano de operações qualquer importância à PIDE. As primeiras medidas contra ela foram timoratas. As primeiras declarações do general Spínola mostravam a intenção de mantê-la em funcionamento. Há alguns anos, o homem que obteve a rendição da PIDE, contou à RTP como foi.

Marcelo Caetano rebaptizara a PIDE como DGS - Direcção Geral de Segurança. Mas a vox populi continuava a designar a polícia política com o nome antigo e esta continuava a ser a instituição mais odiada da ditadura - pelas prisões, torturas e assassínios que tinha no cadastro. Em entrevista concedida ao Expresso 25 anos depois, Otelo refere a intenção de fazer ocupar a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, ao Chiado, pelo Regimento de Infantaria 1, da Amadora. Mas essa intenção não se concretizou.Rendição da PIDE: só no segundo round
A história da rendição propriamente dita é conhecida e está em vários livros, entrevista e apontamentos memorialísticos: a primeira força de fuzileiros, com cerca de 70 homens, enviada para a sede da PIDE tinha à sua frente o comandante Eugénio Cavalheiro. De dentro da sede da PIDE, onde estava a pretexto de uma diligência burocrática, parlamentou o comandante Alpoim Calvão que facilmente convenceu o seu antigo colega da Escola Naval a levantar o cerco e a retirar.

Mas os ânimos estavam cada vez mais exaltados contra a polícia política e contra qualquer ideia de que ela fosse ficar impune. Para regar o fogo com gasolina, os agentes barricados dentro da sede não tiveram melhor ideia do que abrir fogo sobre a multidão que se manifestava à porta. Da fuzilaria resultaram quatro mortos, pelos quais, aliás, nenhum dos pides viria a ser responsabilizado (acima: placa evocativa colocada no local seis anos depois)

Consequência do ódio acumulado ao longo de décadas e de mais esses homicídios de última hora, os pides iriam viver nos dias seguintes o pânico dos linchamentos populares: Alpoim Calvão relata, nomeadamente, o caso de um inspector que não estava na sede da PIDE e portanto não foi capturado nesse momento, mas que lhe telefonou dias depois, pedindo-lhe que o prendesse.

A segunda iniciativa para obter a rendição da PIDE foi mais séria e consequente que a primeira. Mais uma vez, não era o Posto de Comando da Pontinha a pressionar por uma rápida neturalização da PIDE. A iniciativa proveio da Marinha, na pessoa do comandante Almada Contreiras. Uma força de fuzileiros (membros da força, na foto à direita) voltou a ser enviada para a Rua António Maria Cardoso, desta vez sob o comando de Luís Costa Correia, oficial que fizera a guerra na Guiné.

Na altura, Costa Correia permaneceu uma figura discreta, que não procurava as luzes da ribalta. Mas o seu rosto viria a tornar-se conhecido do grande público quase um ano depois, ao intervir junto da força de párquedistas que cercou o RAL 1, na tentativa golpista do 11 de Março. Aí contribuiu Costa Correia para dissuadir essa força de alguma iniciativa contra o quartel, que iria causar mais derramamento de sangue (na imagem da RTP, abaixo: Costa Correia está à esquerda, com casaco de quadrados; o capitão Dinis de Almeida ao centro; e à direita um oficial páraquedista).

"A PIDE está com o MFA"Anos depois, em 2005, o comandante Costa Correia viria a contar, em entrevista à RTP Memória, dois episódios altamente reveladores do ambiente que se viveu na tomada da sede da PIDE. Um desses episódios diz respeito ao seu face a face com o director-geral da polícia, major Silva Pais, logo após a rendição da PIDE.

Silva Pais, em atitude de grande nervosismo, fez questão de declarar a Costa Correia que a PIDE "adere inteiramente" à nova situação política. Costa Correia, ironicamente, replicou-lhe com uma pergunta: "Mas então, sr. major, o que fazem ali aqueles dois retratos?". Na parede, estavam ainda os retratos do presidente, Américo Tomás, e do chefe do Governo, Marcelo Caetano. Silva Pais, atrapalhado, logo foi buscar uma cadeira, enquanto dizia: "Ah, mas eu mesmo tiro, eu mesmo tiro".

A lembrança de Silva Pais, de proclamar com outras palavras que "a PIDE está com o MFA", não era, no entanto, mera expressão do seu susto pelo inesperado desmoronamento da ditadura. Havia também nela um ingrediente de realismo político, que iria ver-se confirmado nas primeiras declarações de Spínola, instado pela imprensa a pronunciar-se sobre o futuro da PIDE.O plano: presos ficam na cadeia, pides ficam em funções
Nas primeiras horas da revolução, o general e presidente da Junta de Salvação Nacional negou publicamente que houvesse alguma intenção de dissolver a PIDE. Interpelado também sobre a responsabilização dos pides que tinham acabado de matar quatro pessoas, Spínola afirmou que "já foi chamada a atenção" da polícia para que algo assim não voltasse a suceder.

Paralelamente, Spínola planeava deixar na cadeia uma parte dos presos políticos. À porta de Caxias, onde se tinha concentrado uma pequena multidão, em que se destacavam vários advogados de defesa dos presos, o tenente-coronel Dias de Lima, spinolista da primeira à última hora, afirmou também à imprensa que "seria espectacular" poder libertar todos os presos, mas que havia alguns, acusados também de delitos comuns, que não poderiam sair.


Foto:Joaquim Lobo
Um novo director para uma PIDE "democrática"
A segunda história que Costa Correia revelou à RTP Memória tem que ver precisamente com a política do sector spinolista para o futuro da PIDE - porque o sector spinolista queria uma PIDE com futuro. Assim, Spínola demitiu Silva Pais, a quem não servira de nada embandeirar em arco pela revolução de Abril. Mas nomeou para o seu lugar (para Spínola continuava a existir o lugar de director-geral da PIDE) o inspector Coelho Dias - um outro pide que era seu amigo pessoal, como sublinhou na mesma entrevista com a RTP Memória a historiadora Dalila Cabrita Mateus. Spínola enviou então a Costa Correia instruções para que tomasse as providências decorrentes da nomeação.

Ao receber essas instruções, Costa Correia falou com Coelho Dias, que "certamente estaria muito cansado", a querer ir para casa - o que o inspector confirmou. O comandante mandou-o acompanhar a casa por uma escolta de confiança, que não o perdesse de vista, e tratou de organizar um leak informativo, para que a imprensa rapidamente tomasse conhecimento dos planos de reorganização da PIDE. Assim foi: ao serem conhecidos os planos, imediatamente caíram por terra, como era inevitável que sucedesse.

O balanço final deste primeiro confronto político foi bem o contrário do que pretendia Spínola. Os presos políticos mantiveram-se solidários: os que eram para ser libertados recusaram sê-lo no âmbito duma libertação apenas parcial. A Junta de Salvação Nacional teve de libertá-los todos. Quanto aos pides, foram para a cadeia (na foto: Silva Pais, preso no Forte de Caxias).Uma vitória póstuma da PIDE
Mas a derrota da Junta na questão da PIDE não era total. Nas colónias, a PIDE começou por não ser dissolvida. E, mais adiante, foi sendo parcialmente reabilitada, quer em processos por homicídio (Humberto Delgado, Dias Coelho) que os tribunais julgaram com indulgência escandalosa, quer também na atribuição de pensões de reforma aos pides. Estes deixavam de ser vistos como membros de uma associação criminosa e entravam, burocraticamente, na categoria de vulgaríssimos servidores do Estado.

O cúmulo veio ainda com um dos governos de Cavaco Silva, que recusou a Salgueiro Maia uma pensão por "serviços relevantes prestados ao país", e, três anos depois da recusa, concedeu precisamente essa pensão aos pides Óscar Cardoso e António Augusto Bernardo. Cardoso ficara na memória de vários presos como o pide que se apresentava mais perfumado nas sessões de tortura, e desse modo causava um sofrimento adicional às suas vítimas, impedidas de dormirem e de se lavarem. Depois esteve também envolvido no tiroteio que matou quatro manifestantes em 25 de Abril.

Mário Soares, então presidente da República, manifestou o seu descontentamento condecorando postumamente Salgueiro Maia. Mas mais significativa era a vitória póstuma da PIDE, reabilitada no favor do poder político finissecular.
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