"Grândola", a canção que a censura deixou passar

por RTP
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Em 29 de Março de 1974, menos de um mês antes da revolução, juntaram-se no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, vários cantores de intervenção para um concerto memorável. A censura levantou dificuldades a várias composições, proibiu outras, mas não percebeu a enorme carga simbólica que já então fazia sobressair uma delas entre todas. Zeca Afonso pôde cantar "Grândola, Vila Morena", sem ser incomodado.

Depois do 25 de Abril de 1974, a "Grândola, vila morena" tornou-se indiscutivelmente o símbolo musical da revolução, como os cravos se tornaram o seu símbolo gráfico. Desde então, foi interpretada pelos artistas mais variados, desde Joan Baez a Pascal Comelade, desde Nara Leão à própria Amália Rodrigues - e tantos outros.

Em tempos ainda mais recentes, a "Grândola" viveu o seu segundo fôlego em Portugal, com as manifestações contra a troika e com as posteriores "grandoladas" dos mais diversos ministros do Governo PSD-CDS. A repercussão internacional da "Grândola" acompanhou esta nova vaga de popularidade local, tendo sido cantada, nomeadamente, numa enorme manifestação no centro de Madrid.

No entanto, a "Grândola, vila morena" já antes do 25 de Abril era alguma coisa para o público e já tinha no ouvido do público um lugar muito especial. A canção fora composta por José Afonso, no regresso de um concerto que dera precisamente em Grândola com Carlos Paredes (à esq. na foto abaixo). E tivera a sua primeira edição discográfica em 1971, no álbum de Zeca Afonso "Cantigas do Maio". Só a insensibilidade dos censores para com a força inspiradora da canção explica que eles a tenham tolerado mais do que outras, um mês antes do desmoronamento da ditadura.

O relatório sobre o concerto do Coliseu, do censor Filipe Malta Ramires, redigido dois dias depois do espectáculo, queixa-se de pequenas artimanhas de vários artistas participantes para contornarem as proibições. O poeta Ary dos Santos declamou dois poemas autorizados pela censura e um que não lhe fora submetido. Quando disse que estava surpreendido por ter visto dois poemas serem autorizados, ganhou a simpatia do público.

O cantor Manuel Freire aludiu aos cortes censórios, dizendo que morava fora de Lisboa e perdera algumas canções no combóio "e até mesmo perdera a última quadra do que ia cantar". Como essa estava proibida, Manuel Freire "limitou-se a trauteá-la", perante comentários jocosos de um público cúmplice.

Também José Jorge Letria tinha duas composições aprovadas pela censura e cantou-as. Instado pelo público a cantar uma outra que estava proibida, recorreu como Manuel Freire ao subterfúgio de trautear. Sem letra, o censor não conseguiu reconhecer qual era a canção trauteada.

Depois de outros episódios menos relevantes, Adriano Correia de Oliveira dispôs-se a apresentar duas canções autorizadas, mas começou por lembrar os companheiros Fanhais e Sérgio Godinho, que estavam impedidos de actuar.

A fechar o concerto, veio Zeca Afonso. Diz o censor: "Mas primeiro todos os artistas deram os braços e oscilavam o corpo da esquerda para a direita, no que foram logo imitados pelo público". Malta Ramires nota ainda que, ao cantar "Grândola", Zeca Afonso era "acompanhado pelo público". Aí já o censor está muito inquieto com o ambiente da sessão, notando que o público "berrava, cremos que intencionalmente, a estrofe 'o povo é quem mais ordena'".
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