Os murais de Alcântara

por RTP
O mural original de Alcântara, entretanto apagado DR

Durante muitos anos, o “mural de Alcântara” foi um ex-libris das paredes exteriores lisboetas e uma das mais vivazes recordações gráficas da revolução. Um dia foi parcialmente vandalizado, depois mais, depois completamente coberto. Agora ressurge, integrado num extenso painel situado na Rua do Cais de Alcântara. E as outras componentes do painel também merecem atenção.

António Alves é um veterano dos grafittis e foi deixando a sua marca em obras que, ao longo de décadas, se tornaram parte essencial da paisagem urbana. O seu estilo - pouco importa agora se por ter intervindo directamente ou por ter inspirado toda uma escola de companheiros e discípulos - era reconhecível em murais de grandes dimensões como o do MRPP no Instituto Superior Técnico ou, em tempos muito mais recentes, o da campanha pela independência de Timor a curta distância da Embaixada norte-americana.

Mesmo os adversários políticos se viam forçados a prestar homenagem à arte do incansável grafiteiro, a quem chamariam com um misto de admiração e inveja mais um "pinta-paredes" maoista. Hoje, é António Alves que homenageia grafiteiros de outra tendência política, o MES, que produziram o famoso mural de Alcântara - uma presença visível naquela zona ribeirinha durante vários anos.

O MES não era tão prolífico em murais como o MRPP, e até esse facto tornava a imagem de soldados e marinheiros, empunhando a enorme bandeira vermelha, quase uma provocação às pretensões hegemónicas do MRPP nas paredes da cidade. A vandalização do belo mural traduziu, portanto, essas pretensões. E António Alves refaz hoje a imagem que começou por ser do MES e se tornou de todos, também para redimir-se das culpas de um sectarismo passado.

As várias secções do novo mural de Alcântara seguem, da esquerda para a direita, uma ordem cronológica aproximada, mas com adequações diversas. Assim, vemos evocadas vítimas do colonialismo, como Amílcar Cabral, e do fascismo, como o comunista Dias Coelho, o maoista Ribeiro Santos, o padre Max e Maria de Lurdes, já no pós 25 de Abril. Vemos imagens das lutas camponesas antes do 25 de Abril e outras das prisões da PIDE.

Vários momentos de luta, com especial destaque para os temas do PREC, encontram-se presentes nas secções seguintes do painel, recorrendo em parte à imagética daqueles tempos, e também a figuras da revolução novecentista da Maria da Fonte, com a legenda intemporal, de grande actualidade potencial: "Correr com a cambada". De tempos mais actuais, surgem-nos também imagens ligadas à resistência maubere contra a ocupação indonésia.

Do desenvolvimento do grande painel mural, vai dando conta a página do facebook dedicada aos trabalhos e à equipa que eles foram aglutinando, nem toda presente desde a grelha de partida, alguma arrastada pelo entusiasmo do projecto já em andamento. O nome da página e título do painel é todo um programa: "40 anos, 40 murais". Nele se confessa a esperança de que o exemplo frutifique. Em algumas outras cidades, começa efectivamente a frutificar e equipas de artistas locais têm tomado a iniciativa para comemorar com novos e elaborados graffitis o aniversário redondo que se avizinha.



No painel lisboeta, não faltam temas do presente, exemplificado pela luta dos estivadores - ao mesmo tempo uma luta indígena do cais de Alcantâra, e altamente internacional, pela tradição de solidariedade daquela classe e pelas ligações internacionais que o Sindicato dos Estivadores nunca escondeu.

Ao lado, uma imagem do parlamento, do qual não se quis fazer, idilicamente, um símbolo da democracia, especialmente numa fase em que passam por ele e passam nele tantas leis contestadas na sociedade. Sobre o edifício de São Bento, um céu cinzento, mas sem qualquer astro mudo, despede raios e coriscos que bem podem ser tomados como expressão de repúdio dos artistas autores do painel pelo actual papel da Assembleia da República na vida política.

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