80 anos depois, Putin procura reabilitar o Pacto Hitler-Estaline

por RTP
Molotov (ao centro, assinando o Pacto), Ribbentrop (atrás de Molotov) e Estaline (à dir. de Ribbentrop na fotografia) DR

Em 24 de agosto de 1939, o ministro nazi dos Negócios Estrangeiros assinava em Moscovo um pacto designado como "de não-agressão". Mas o pacto não era só isso: ele tinha um protocolo adicional ultra-secreto, que partilhava territórios na costa do Báltico. Meio século depois, o Parlamento soviético dos finais da Guerra Fria repudiou-o. Decorridos mais 30 anos, Putin quer reabilitá-lo.

O Pacto Molotov-Ribbentrop foi assinado a 24 de agosto de 1939 e antecedeu em apenas nove dias o início formal da II Guerra Mundial, com a invasão da Polónia pela Alemanha. Ao assinar o acordo, Hitler garantia que não teria uma guerra em duas frentes. Por sua vez, Estaline pôde preparar o caminho para a anexação dos Estados bálticos, onde se fixariam as novas fronteiras soviéticas.

Ideologias antagónicas à parte, o pacto entre a Alemanha nazi e a União Soviética dividiu a Europa de Leste em duas esferas de influência. O acordo firmado entre as duas potências deveria ter durado dez anos, mas menos de dois anos depois da assinatura, Berlim lançou o ataque contra a URSS.

O acordo é comummente conhecido por Pacto Molotov-Ribbentrop, em referência aos dois ministros dos Negócios Estrangeiros que o negociaram e assinaram, Joachim von Ribbentrop e Vyacheslav Molotov. Também é conhecido por Pacto Germano-Soviético ou Pacto Hitler-Estaline.

Poucos meses antes da assinatura do pacto, Estaline já preparava o caminho para um acordo com a Alemanha nazi com a substituição das mais altas patentes. A 3 de maio de 1939, o líder da União Soviética substituiu o ministro soviético dos Negócios Estrangeiros: três meses antes de chegar a acordo com a Alemanha, Vyacheslav Molotov ocupava o lugar que até ali pertencera durante quase nove anos a Maxim Litvinov, um russo de origem judaica.

A assinatura de um pacto entre um país de ideologia oficial comunista e outro declaradamente nazi era um facto tão extraordinário que surpreendeu toda a gente e criou problemas logísticos bem reveladores.

Como todas as unidades da força aérea e da defesa antiaérea soviética estavam educadas na desconfiança face ao inimigo nazi, foi preciso tomar precauções especiais para não ser abatido o avião que tinha como destino a capital russa, e em que viajava o chefe da diplomacia alemã, Joachim von Ribbentrop. Mesmo assim, e apesar de avisados os comandantes das unidades na rota do voo, algum precalço fez que o avião fosse alvejado e só escapasse por pouco.

Depois, à chegada a Moscovo, havia a intenção de receber Ribbentrop com o hino do proletariado de todo o mundo, "A Internacional", e com o hino nazi "Horst-Wessel-Lied". Cantar era fácil, e houve logo quem se prestasse a essa insólita confraternização. Mais difícil era encontrar bandeiras com a suástica para colocar ao lado da foice e do martelo, porque nunca tal coisa se vira em Moscovo. Foi preciso então ir buscar bandeiras nazis aos estúdios de cinema soviéticos, para fazer Ribbentrop sentir-se em casa.

Ribbentrop relatou depois que, ao entrar no gabinete de Molotov, teve a surpresa de aí encontrar o próprio Estaline. Nas fotografias da assinatura, é Molotov quem rubrica o acordo pela parte soviética, com Estaline em pano de fundo; mas o aperto de mão que foi fotografado para a posteridade é entre Estaline e Ribbentrop. No beberete que se seguiu, brindou-se com champanhe e Estaline pronunciou um breve discurso, dizendo: "Sei como o povo alemão ama o seu Führer, e por isso bebo à saúde dele”.
Duas lendas sobre o Pacto Hitler-Estaline
Ao comemorar-se o 80º aniversário do Pacto Germano-Soviético, há duas leituras simétricas, ambas questionáveis. Uma, comum em muita imprensa ocidental, pretende que o pacto foi o culminar inevitável das afinidades entre dois regimes totalitários, que naturalmente se conluiaram contra as democracias ocidentais.

Outra, agora muito popular em alguma imprensa russa, defende que, na verdade, as potências ocidentais se preparavam para dar mais um passo na sua política de appeasement, apoiando um ataque da Alemanha nazi à União Soviética (URSS). Sendo assim, a URSS teria negociado o pacto com a Alemanha para dividir esse bloco de potenciais inimigos, ganhar tempo e, durante esse tempo, poder preparar-se para a eventualidade da guerra.

As duas versões, igualmente falsas, contêm ingredientes verdadeiros. A versão russa baseia-se na realidade da política de apaziguamento inglesa, que sacrificou a Checoslováquia aos apetites expansionistas do nazismo, e foi aceitando quase todas as exigências ou os factos consumados da política hitleriana. Embora a URSS tenha procurado precaver-se contra a agressividade da Alemanha nazi através de um acordo com a França, desde os acordos de Munique nada garantia que os Governos de Londres e Paris viessem a opor-se a uma invasão da URSS pela Alemanha.

Por outro lado, é verdade que a assinatura do Pacto não se limitou a ganhar tempo para a URSS. Ela proporcionou à Alemanha nazi a certeza de que poderia invadir a Polónia e enfrentar a declaração de guerra anglo-francesa sem correr o risco de ser atacada pela URSS na sua frente oriental. A segurança dessa frente era muito importante para a Alemanha, que pretendia as mãos livres para uma eventual Blitzkrieg (guerra relâmpago) no ocidente, sem correr o risco de ser ensanduichada numa guerra em duas frentes.

Pouco mais de um ano após a assinatura do pacto, Adolf Hitler assinava, a 18 de dezembro de 1940, a Diretiva 21 (Operação Barbarrossa), dando início aos preparativos para a invasão da URSS, que se materializa a 22 de junho do ano seguinte.


Afinal, para Hitler, o acordo fora uma manobra táctica, que deu tempo à Alemanha para obter ganhos importantes na fronteira ocidental sem temer um ataque numa nova frente, de tal forma que o interesse em visar a União Soviética só surge depois de consolidada a ocupação nazi de França.
A URSS desacredita-se perante as pequenas nações

Juntamente com o Pacto de não-agressão propriamente dito, elaborou-se o Protocolo Adicional, que permaneceu secreto. Na verdade, ele constituía a parte mais inconfessável do tratado, por combinar uma partilha das áreas de influência.

A URSS obtinha a garantia de que a Alemanha não levantaria obstáculos a uma anexação das pequenas repúblicas bálticas e eram-lhe mesmo reconhecidas pretensões que tinha sobre dois terços do território polaco. Numa frase assassina incluída no protocolo, deixava-se em aberto se a Polónia como tal deveria continuar a existir ou se seria, pelo contrário, desmembrada.

O acordado representava uma viragem de 180 graus relativamente ao que tinha sido a política de Lenine para as pequenas nações. Logo ao chegar ao poder, o líder da revolução de Outubro proclamara o direito das pequenas nações dominadas pelo império czarista a separarem-se da Rússia, se assim quisessem. Na área do Báltico, essa proclamação estivera na origem das independências polaca, finlandesa, estónia, letona e lituana.

Mas no início dos anos 1920 a política de apoio às pequenas nações contra o chamado o "chauvinismo grão-russo" não era apenas um elemento essencial da estratégia soviética para o relacionamento com os povos vizinhos. Quando fracassou a aposta de Lenine numa transformação socialista da Alemanha, as esperanças soviéticas voltaram-se para os povos do Oriente, nomeadamente, em primeiro lugar, a Índia e a China.

A expectativa de fazer dos grandes povos asiáticos, dominados até aí pelo colonialismo, aliados de peso face às potências ocidentais pressupunha dar um bom exemplo no relacionamento com as pequenas nações até então dominadas pelo império russo. A independência das nações bálticas tinha sido, durante vários anos, um trunfo decisivo na política externa soviética. O protocolo adicional, mesmo permanecendo secreto, ia destruir esse trunfo.

Com a aplicação do Pacto, duas semanas depois da invasão alemã no ocidente da Polónia, a URSS enviou o Exército Vermelho ocupar a parte oriental do país. Deu assim o golpe de misericórdia na resistência militar polaca e iniciou uma ocupação que, na parte sob o seu controlo, logo causou mais de 20.000 mortos. O massacre de prisioneiros militares polacos pela NKVD (serviços secretos de Estaline), cometido em Katyin, ficou para a posteridade como símbolo da ocupação.

Seguiu-se uma série de pressões económicas, políticas e militares sobre a Estónia, a Letónia e a Lituânia. As três pequenas repúblicas foram empurradas para acordos leoninos com a URSS que se concluíram com a sua anexação pela URSS. Com a Finlândia, a receita não resultou e Estaline iniciou uma guerra de conquista, que deparou com uma resistência denodada e acabou por se tornar demasiado sangrenta e dispendiosa. Foi concluída com um acordo, em que a Finlândia conservava a independência, mas perdia uma parte dos seus territórios.
A URSS colabora com a economia de guerra alemã

Durante a vigência do Pacto Hitler-Estaline, a Inglaterra submeteu a Alemanha a um rigoroso bloqueio naval, que impedia a potência inimiga de importar de além-mar mercadorias decisivas para o seu esforço de guerra.

O comércio germano-soviético, responsável em 1939 apenas por 0,6 por cento das trocas externas da Alemanha, multiplicou-se por 13 logo no ano seguinte. As exportações para a Alemanha passaram a representar 52 por cento do total de exportações soviéticas. Em 1940, 81,4 por cento das exportações soviéticas de cereais destinaram-se à Alemanha nazi.

Até à ruptura do Pacto, a URSS forneceu à Alemanha, além dos cereais, algodão, madeira, manganésio, crómio, platina e, principalmente, petróleo. O défice estava sempre do lado alemão: em 1940, a Alemanha entregou à URSS mercadorias por 55 do valor das que tinha recebido; em 1941, por 82 por cento. Por outras palavras: a URSS abria crédito ao esforço de guerra alemão, como os EUA o abriam ao esforço de guerra britâncio.

Ainda nos anos 1960 investigações do economista Ferdinand Friedensburg mostraram que proveio da URSS um terço do petróleo que se refinou para fabricar o combustível com que a Blitzkrieg alemã venceu no ocidente. Graças a ele, a Wehrmacht expulsou as tropas inglesas do continente, em Dunquerque, e forçou a capitulação do Exército francês em junho de 1940.

Por outro lado, a URSS importou cobre, zinco e níquel como se fosse para si própria, mas na verdade como agente encapotada da Alemanha nazi, para onde eram reexportados esses minérios muito procurados pela indústria de guerra.

Segundo o jornalista e historiador norte-americano William L. Shirer, a URSS disponibilizou também para utilização alemã portos do Ártico, do Mar Negro e do Oceano Pacífico, por onde transitaram matérias-primas que a indústria de guerra alemã de outro modo não conseguiria subtrair ao bloqueio britânico.

Aos portos juntava-se o caminho de ferro, que, no acto de assinatura do Pacto, Molotov prometera para utilização - gratuita - dos alemães. Uma das mercadorias que durante os dois anos do Pacto circularam da China para a Alemanha pelo transsiberiano foi o volfrâmio - minério que devia entrar nas ligas de aço utilizadas pela indústria de guerra, para aumentar a resistência das peças de artilharia às subidas de temperatura em caso de utilização prolongada.

Quando a Alemanha atacou a URSS em junho de 1941, o volfrâmio chinês deixou de poder passar pelo transsiberiano. Adquiriram então decisiva importância as importações de volfrâmio provenientes da Espanha e principalmente de Portugal.

Os parceiros económicos da Alemanha do lado soviético foram prestimosos até ao limite do caricato: segundo o chefe da intendência militar alemã, general Georg Thomas, em vésperas do ataque alemão contra a URSS a parte alemã solicitou que fossem antecipadas algumas entregas de borracha provenientes do Extremo-Oriente e que lhe fossem entregues com máxima prioridade.

Num momento em que Göring já dera instruções para reter e adiar os últimos fornecimentos alemães à URSS, a parte soviética satisfez prontamente o pedido alemão de urgência, de modo que a entrega ainda pôde ser feita ao inimigo antes de este desencadear a guerra mais mortífera da História universal (cerca de 26 milhões de mortos soviéticos).
A URSS entrega comunistas alemães à Gestapo
O “amor do povo alemão pelo seu Führer”, de que Estaline falara no beberete, era a imagem que passava numa imprensa sufocada pela censura e num espaço público dominado por manifestações nazis cuidadosamente coreografadas. O reverso menos conhecido da medalha era a resistência antinazi, que a URSS até à data do Pacto tinha enaltecido, mas que daí em diante silenciou.

Em conformidade com essa desvalorização da resistência, centenas de comunistas alemães ou austríacos refugiados na URSS foram entregues à Gestapo. Margarete Buber-Neumann, uma das comunistas entregues aos nazis, foi das poucas que sobreviveram à guerra e pôde contar as circunstâncias do seu transporte da URSS para a fronteira de Brest-Litovsk. Recorda que em 4 de fevereiro de 1940 foi metida num comboio com mais duas mulheres e 28 homens e viajou durante três dias ao encontro da Gestapo. Alguns recusaram sair do comboio e foram retirados à força.

O historiador austríaco Hans Schafranek sustenta que alguns antifascistas alemães já vinham sendo entregues pela URSS à Gestapo desde 1937, quando Estaline simplesmente optava entre mandar fuzilar ou deportar esses antifascistas. Mas a maior parte foi entregue após a assinatura do Pacto, totalizando pelo menos 400 casos comprovados e identificados. Muitos outros, entregues sem documentos, terão ficado fora das estatísticas.

Hermann Weber, um historiador e dissidente comunista, debruçou-se igualmente sobre o tema e encontrou centenas de histórias de vida de comunistas entregues a Hitler em sinal da boa vontade de Hitler.
A URSS silencia o antifascismo dos comunistas europeus
Nos países europeus ocupados pelo nazismo, a resistência foi inicialmente paralizada pela vigência do Pacto Germano-Soviético. Um dos mais emblemáticos exemplos dessa realidade foi o Partido Comunista Francês. À data da assinatura do Pacto, o PCF era um partido de massas com 300.000 filiados e uma forte representação parlamentar. Ao receberem a notícia do Pacto, numerosos militantes rasgaram o seu cartão do partido. Mesmo entre os deputados, quase um terço rompeu com o PCF: 21 num total de 72. 

Em junho de 1940, quando a França capitulou perante a Alemanha, o PCF criticou o regime fascista de Vichy e criticou com idêntico empenhamento o general de Gaulle, que desde Londres apelava à resistência. Dos ocupantes alemães, o PCF procurou obter uma autorização para publicar legalmente “L’Humanité”. Na esperança vã de obter essa autorização, o PCF absteve-se de criar um aparelho clandestino e deu aos seus militantes instruções para actuarem na legalidade.

A orientação foi desastrosa e tornou-os um alvo fácil da repressão: muitos foram presos por assumirem publicamente a sua filiação partidária. Em tudo isto, Gabriel Péri infringia a política legalista do PCF, mantinha-se na clandestinidade e opunha-se energicamente à negociação com os nazis para legalizar “L’Humanité”. Ele viria a ser capturado pelos nazis em 18 de maio de 1941, num esconderijo que, pela sua precariedade, parecia propositadamente escolhido para o entregar à Gestapo.

No mês seguinte, a Alemanha atacará a URSS de surpresa, rompendo o Pacto Hitler-Estaline. Aos partidos comunistas serão dadas instruções para organizarem a resistência armada, ou para participarem nela onde já começou. O PCF segue as instruções e inicia a luta armada em agosto, com um atentado cometido por um militante conhecido mais tarde como “Coronel Fabien”. Daí em diante, mas só daí em diante, o PCF irá adquirir um inegável protagonismo na resistência francesa.

Para Péri, precursor da política de resistência contra a linha do partido, a viragem vem demasiado tarde. Nas mãos da Gestapo, ele recusa várias propostas de emitir uma declaração desautorizando as acções armadas da resistência. Propostas idênticas são feitas ao dirigente histórico do PCF, Marcel Cachin, que escreve um documento com todo o argumentário dos tempos do Pacto, recordando o seu empenhamento na “amizade franco-alemã”. Os nazis tiram consequências lógicas desta diferença de atitudes: libertam Cachin em outubro de 1941 e fuzilam Péri em dezembro.
A viragem de Putin
Ao longo das últimas décadas, o pacto Molotov-Ribbentrop tem sido alvo de várias leituras por parte das autoridades russas. Até ao final da Guerra Fria, mesmo com a liderança de Mikhail Gorbachev, os responsáveis soviéticos negaram sempre a existência de um pacto entre nazis e comunistas, ainda que a versão ocidental dos mesmos documentos já fosse conhecida.

Só em 1992 é que os documentos originais da União Soviética foram finalmente exibidos, corroborando uma realidade que o mundo já conhecia e algo que Moscovo teimava em não reconhecer.

Há 20 anos no poder, Vladimir Putin também já teve tempo de mostrar duas visões diferentes sobre este marco da história da União Soviética. Em 2009, na altura como primeiro-ministro, considerava que aquele pacto fora “prejudicial e perigoso”.

“Todas as tentativas de apaziguamento com os nazis, entre 1934 e 1939, por via de diversos acordos e pactos, foram moralmente inaceitáveis, politicamente insanos, prejudiciais e perigosos”, apontou em setembro de 2009, em Gdansk, na Polónia, aquando das cerimónias que marcaram o 70º aniversário do início da II Guerra Mundial.

“Um conluio para resolver os nossos problemas à custa de outros”, assinalou ainda Putin.

Nessa altura, a Rússia começava a reconhecer de forma tímida os efeitos da política estalinista durante o século XX. Um ano depois, em 2010, o chefe de Governo da Rússia curvou-se perante a floresta de Katyn, na Polónia, onde ocorreu um dos maiores massacres da II Guerra Mundial.

Presidente desde 2012, Putin parece estar agora num processo que os principais críticos apontam como uma tentativa de “reabilitação” de Estaline. As grandes comemorações do 70º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, em 2015, terão sido exemplo disso mesmo. A efeméride foi assinalada com várias homenagens ao antigo líder a percorrerem a Praça Vermelha no Dia da Vitória, e até mesmo com a abertura de um novo museu alusivo à importância do antigo líder no desfecho do conflito.

“A União Soviética assinou um pacto de não-agressão com a Alemanha. E dizem: ‘Que mau’. Mas o que há assim de tão errado, se a União Soviética não queria lutar? O que há assim de tão mau nisso?”, questionou Putin em novembro de 2014, durante um encontro com historiadores russos no Museu de História Moderna da Rússia, em Moscovo.

Um ano mais tarde, durante uma conferência realizada ao lado de Angela Merkel, o Presidente russo procurou justificar a assinatura do pacto germano-soviético.

"A União Soviética fez um grande esforço para criar as condições favoráveis a uma resistência coletiva ao nazismo na Alemanha, mas todos os esforços não tiveram sucesso. Quando a URSS percebeu que tinha sido deixada sozinha para fazer face à Alemanha de Hitler, tomou medidas para evitar um confronto direto, e o pacto Molotov-Ribbentrop foi assinado", referiu.

Nessa intervenção, recorda o Fígaro, o presidente russo teve o cuidado de não mencionar o protocolo adicional ao Pacto Molotov-Ribbentrop, na sequência do qual Moscovo anexou os países bálticos. Uma decisão que Putin considera compreensível, ao nível tático, mas que a chanceler alemã considerou ser “ilegítima”.

Para muitos, o presidente russo está, nos últimos anos, a procurar reescrever a história do ditador do tempo soviético, ao desvalorizar os crimes cometidos e ao recordar o seu papel como um líder que derrotou o fascismo. Peter Rutland e Neil Shimmield consideram que o objetivo passa também por consolidar o estilo de “liderança forte” aos olhos dos russos.

Com diferentes níveis de violência, historiadores e analistas veem nos dois líderes uma liderança patriótica da Rússia, com a valorização do coletivo em detrimento dos direitos individuais e as tendências expansionistas comuns a ambos: no caso de Estaline, após a assinatura do Pacto Molotov-Ribbentrop, no caso de Putin, com as incursões na Chechénia em 1999, a Geórgia em 2008 e a Ucrânia, em 2014.

Ainda que tenha assinado um acordo com a Alemanha nazi, o legado sangrento de Estaline é hoje olhado pela atual liderança do Kremlin e mesmo pelos próprios russos como um mal menor, uma moeda de troca para a derrota dos nazis na II Guerra Mundial.

“Ele manteve-nos todos juntos, havia amizade entre as nações, e sem ele tudo se desmoronou. Precisamos de alguém como ele se quisermos paz e liberdade dos fascistas na Europa e na América”, considerava uma popular ouvida em 2015 pelo jornal Los Angeles Times.

De acordo com uma sondagem do Centro Levada, 39 por cento dos inquiridos tinha uma opinião positiva sobre Estaline. São cada vez mais os russos que olham para o passado e aprovam a atuação do antigo líder.

Quanto às numerosas mortes durante a liderança estalinista, 45 por cento dos inquiridos consideram que essas mortes podem ser justificadas com grandes conquistas alcançadas, como a vitória na guerra, a modernização das indústrias ou mesmo a batalha pela supremacia contra os Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Aliados entre os radicais?
Na visão do historiador Timothy Snyder, autor do livro “Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin”, a aproximação entre a Rússia de então e a Alemanha Nazi é atraente para Putin na atualidade.

Menos de um ano após a assinatura do pacto Molotov-Ribbentrop, os Estados Bálticos foram anexados pela União Soviética, que declarou simultaneamente que estes nunca tinham existido. E essa ideia soviética de que se pode declarar que um Estado existe ou deixa de existir é um eco que se faz ouvir no posicionamento da Rússia no pós-Guerra Fria, sobretudo com a anexação da Crimeia e o conflito emergente nos últimos anos no leste da Ucrânia.

Timothy Snyder nota que a segunda parte da guerra, quando Hitler violou o pacto e invadiu a URSS em junho de 1941, tem ocupado o imaginário de soviéticos e russos, sendo que os primeiros anos do conflito – de entendimento com a Alemanha nazi – ficaram esquecidos, ainda que tenha sido precisamente a complacência de Moscovo que abriu as portas ao ataque da Wehrmacht.

Na argumentação do historiador, o pacto Molotov-Ribbentrop na ideologia comunista não visava apenas os territórios da Europa de Leste, mas também toda a ordem europeia.

“Ao fazer a aliança com Hitler, Estaline seguiu uma lógica política. Imaginou que, ao apoiar o Estado nazi, que se preparava para iniciar a guerra total, manteria as forças armadas alemãs a oeste, longe da União Soviética. Desta forma, as contradições inerentes ao mundo capitalista seriam claras e Alemanha, França e Reino Unido entrariam em colapso de forma simultânea. À sua maneira, Putin está agora a tentar a mesma coisa. Tal como Estaline tentou moldar as forças mais radicais da Europa contra si própria (…), Putin tem-se aliado aos populistas, fascistas e separatistas antieuropeus. Estes aliados na extrema-direita são precisamente as forças políticas que desejam por fim à ordem que vigora na Europa: a União Europeia”, considera o historiador.

Se na altura do acordo de Molotov-Ribbentrop, Estaline “comprometeu a ideologia e cometeu um erro estratégico”, estava, no entanto, a corresponder a uma ameaça concreta que se formava na sua fronteira, defende o professor de Yale e membro do Council on Foreign Relations. 

No caso de Putin, a oposição à Europa – e à ordem ocidental, tendo em conta a alegada ingerência nas eleições presidenciais norte-americanas e noutros escrutínios recentes – parece surgir sem motivo que não o da derrota per si da ordem em vigor, algo que poderá ser dramático para a própria Rússia, tendo em conta a proximidade geográfica com os países que integram a comunidade europeia e os vínculos existentes entre as várias economias.

Timothy Snyder argumenta ainda que o Governo russo definiu a União Europeia como adversária em 2013 sem ter quaisquer razões para o fazer, sendo que não tinha inimigos europeus. No ano seguinte, com a ação de anexação da Crimeia, Moscovo precipitou uma rutura completa com o Ocidente que está longe de ficar revertida.

Os 80 anos deste pacto germano-soviético são assinalados num momento de aparente reaproximação entre a Rússia e o Ocidente. “O Ocidente abandonou a sua hostilidade para com Putin e a Rússia, a todos os níveis”, considerou o historiador John Laughland, na análise à recente visita do Presidente russo a França, onde foi acompanhado por um Macron sorridente e afetuoso.

O encontro ocorreu na última segunda-feira em Bregacon, França, poucos dias antes da cimeira do G7 também em França, mais concretamente em Biarritz. O grupo das maiores economias mundiais, anteriormente G8, incluía a Rússia até à anexação da Crimeia, em 2014.

Apesar do palpável ambiente de reconciliação, o Presidente francês continua a considerar que a readmissão da Rússia seria “um erro estratégico” e um sinal de “fraqueza”.

Outros líderes têm considerado que a reintegração da Rússia no grupo informal passaria a mensagem de que as anexações e violações do Direito Internacional passam despercebidas e não conhecem quaisquer consequências práticas.

No entanto, Emmauel Macron admitiu que já considera pertinente que, “a prazo”, a Rússia possa regressar ao G8, no mesmo sentido do que já foi defendido em várias ocasiões pelo Presidente norte-americano.

Por sua vez, a chanceler Angela Merkel reconheceu que têm existido “movimentos ténues” da Rússia na aplicação dos acordos de paz na Ucrânia, mas que seria prematuro dar esse passo.

Numa conferência de imprensa ao lado da chanceler alemã, o novo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, concordou esta semana com a homóloga, considerando que “a situação que poderá permitir o regresso da Rússia ainda está por concretizar”.
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