A libertação de Xanana Gusmão e a incerteza do seu regresso a Timor-Leste em 1999

por Lusa

Uma das formas de contar o `filme` da saída em liberdade de Xanana Gusmão da Indonésia, há 20 anos, seria com comida: queijo da serra e bacalhau numa embaixada em Jacarta e frango de churrasco numa praia australiana.

As duas refeições, ambas inesperadas, dão cor a um dos momentos altos do período após o referendo de 30 de agosto de 1999 em Timor-Leste, em que a maioria dos timorenses escolheu a independência.

A história da viagem para a liberdade foi contada à Lusa por Paula Pinto, primeira de três mulheres que em 1999 montou o gabinete de apoio ao então preso mais famoso da Indonésia, Xanana Gusmão.

"A operação foi um filme completo. A coisa foi organizada com o apoio de algum corpo diplomático e com as Nações Unidas", contou Paula Pinto à Lusa, em Díli, revelando pela primeira vez alguns dos detalhes da história.

"Xanana Gusmão queria voltar diretamente para Timor-Leste, mas quer a ONU quer o corpo diplomático achavam que era uma loucura, que seria morto. Estamos a falar a 18 de setembro, o dia que saímos de Jacarta", recorda.

A libertação de Xanana Gusmão ocorre, oficialmente, a 18 de setembro de 1999, dois dias antes da entrada em Timor-Leste dos primeiros efetivos da INTERFET, a força internacional liderada pela Austrália.

A onda de violência que varreu Timor-Leste tinha levado à destruição de grande parte da infraestrutura do território e Xanana Gusmão regressava a um país com um futuro ainda incerto, envolto na emergência de centenas de milhares de deslocados e de edifícios ainda em chamas.

"Organizamos uma operação em que Xanana sairia para a Austrália. Na Austrália reunir-se-ia todo o CNRT no exterior, uma convergência dos membros do CNRT na diáspora e a partir daí organizava-se o regresso a Timor e o dia depois", explicou.

Todos estavam conscientes dos potenciais riscos - o gabinete de apoio a Xanana Gusmão foi atacado e havia manifestações diárias em frente à Embaixada Britânica, para onde Xanana foi transferido quando saiu da casa prisão de Salemba, a 7 de setembro.

Por isso, "a saída de Jacarta foi feita com bastante secretismo".

A 18, Paula Pinto organiza uma "grande almoçarada" onde participam, entre outros, a então embaixadora Ana Gomes e o enviado da ONU Tamrat Samuel.

"A Ana forneceu o bacalhau e o queijo da serra. Ninguém sabia que ele ia sair. Às duas da tarde pedi para fazerem as malas. Às quatro arrancámos para o aeroporto em Jacarta", relembra, recordando que Muladi, então ministro da Justiça indonésio, se veio despedir pessoalmente.

Xanana Gusmão viaja num voo da Quantas para Sydney, depois daí para a cidade de Cairns, no centro da Austrália e finalmente para Darwin, no Território Norte, onde chega a 20 de setembro, já com a INTERFET em Timor-Leste.

"Somos levados do avião e metidos num pequeno avião e levados para a pequena península de Cobourg", disse, referindo-se a uma região a cerca de 350 quilómetros leste de Darwin, uma zona praticamente desabitada, onde há apenas algumas casas.

"Um sítio tão isolado que não tinha sinal de telemóvel, não tinha televisão nem rádio. Passei uma noite inteira a tentar arranjar uma televisão velha que lá estava, talvez dos anos 60", disse.

Depois de estar preso durante mais de sete anos, Xanana Gusmão passava a sua primeira verdadeira noite em liberdade num dos locais mais isolados da região.

"Mas a com a liberdade de estar numa pequena cabana de madeira à frente do mar, de poder tomar banho no mar quando queríamos. E ainda passamos umas horas divertidas. Estava Xanana, Kirsty [Sword, que mais tarde se casaria com o líder timorense], eu e 3 dos seguranças do Xanana", afirmou.

"No dia a seguir apareceu um helicóptero australiano que trazia duas pessoas da ONU. Afinal estava tudo em pânico em Darwin. O falecido João Carrascalão até pensava que Xanana tinha sido raptado. Sabiam que tinha saído de Jacarta mas não havia registo de ter passado por Sydney ou Cairns e ninguém sabia de nós", recorda.

O pânico chegou à própria missão da ONU que tinha saído praticamente toda de Díli e estava em Darwin.

"Reunimos com Ian Martin e tomou-se a decisão de eu partir no helicóptero com eles para preparar a chegada dele a Darwin a 22 e preparar a conferência de imprensa. Queria uma grande conferência de imprensa para mostrar que estava livre e falar do que ia acontecer com Timor-Leste", relembra.

E o roller-coaster do regresso a Timor começava.

"Fiquei com pena de deixar a praia maravilhosa. Depois de sete meses de loucura, de momentos de quase loucura, estar numa praia daquelas absolutamente paradisíaca, a assar frango de churrasco em liberdade, sem sentir ameaças, sem ninguém a seguir-nos. Foi uma sensação muito boa", recorda.

 

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